
De um movimento literário de nome realismo não é despropositado que o leitor ou estudioso espere uma representação do mundo real. Considerando-se que todo escritor trabalha sua ferramenta, a linguagem, sempre em função de uma tensão entre representação e invenção (LAGES, 2001:128), o realista seria aquele que tenderia mais à representação. Como se sabe, entretanto, o problema não pode ser posto em termos tão simples. Há alguns autores e obras que, embora representem coisas inimagináveis, só críveis dentro do campo do fantástico, não são menos representativos da sociedade, da relação entre as pessoas, dos indivíduos e seus maneirismos. A lógica, nesses casos, é diferente: mais do que o configurado diretamente pela linguagem ao leitor, o realismo está nas idéias exemplificadas pelo fantástico, pela estrutura do texto, pela forma de narrar, ou em outros aspectos.
Em seu estudo sobre Dostoievski, Bakhtin se refere a obras desse tipo na Antiguidade Clássica como dentro do campo do sério-cômico. Nesse tipo de literatura, a realidade, mesmo a realidade do dia-a-dia, seria sempre o ponto de partida. Não importando se baseados em lendas ou mitos, como nos contos analisados abaixo, esses textos oferecem uma visão crítica ou cínico-desmascaradora, como afirma Bakhtin, da realidade. Como resultado, temos uma “imagem quase liberta da lenda, uma imagem baseada na experiência e na fantasia livre” (Bakhtin: 108). Ou seja, os autores do sério-cômico usam as lendas, mitos e todas as significações simbólicas a eles associados para se referir a algo da realidade de maneira crítica.
Machado de Assis fez obras desse tipo. “Viver!” e “Adão e Eva”, de Várias Histórias, apesar de serem incríveis no que representam, apresentam aquela característica que transpassa todos os textos do autor, aquele relativismo moral, aquela falta de valores absolutos, aquela descrença nos homens que é o resultado, como bem colocou Bosi, do fato universal e atemporal de que os homens “se defendem” (Bosi, 1982: 88). Eles se defendem, eles precisam, para viver, ou ao menos para viver confortavelmente, e é disso, exatamente, que resultam todas suas falhas morais e o conseqüente desencanto de Machado por nossa espécie e sociedade.
Essa moral fluída e realista, já que representativa, é o que está presente nos contos citados e é o que pretendo demonstrar abaixo.
O início
O conto “Adão e Eva” se passa num engenho na Bahia, “pelos anos de mil setecentos e tantos”. Durante uma festa, um homem demonstra curiosidade sobre qual tipo de doce está sendo servido. Isso é motivo, então, para uma discussão sobre a curiosidade, se os homens ou as mulheres seriam mais curiosos e de quem seria a culpa pela perda do paraíso.
Todos acabam opinando sobre a questão, menos frei Bento, que “toca viola”, e o juiz de fora, o Sr. Veloso. Esse afirma que a questão não pode ser posta nesses termos já que “as cousas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que contado no primeiro livro”, o Velho Testamento.
O que se segue, então, é o Sr. Veloso recontando uma parte da Bíblia. Antes, porém, alguns detalhes do texto são um indício do tipo de narrativa que se dará. Em primeiro lugar, é preciso notar que, enquanto em todos os outros presentes a revelação do juiz Veloso de que a Bíblia estava errada causou espanto, no frei - justamente no frei, homem da igreja e que, teoricamente, deveria ficar mais indignado com isso -, que o conhecia, um sorriso foi o resultado. Esse sorriso é significativo: indica aprovação, certa cumplicidade, como se ele soubesse o teor do que seria dito e aquela fosse a ocasião ideal para dizer. Isso, aliás, não é impossível já que, como foi dito, ele conhecia o juiz. Do Sr. Veloso também se afirma que é “amigo da pulha”, desde que “curial e delicada”, assim como “jovial”, “inventivo” e, importante, “um dos mais piedosos sujeitos da cidade”. Voltarei a essas características.
Sobre a narrativa que se seguirá, o frei afirma que terá “boa significação”. Machado, por meio de seus personagens, de uma maneira direta que não lhe é peculiar, parece estar nos avisando do que se trata: é uma história com significações ocultas, uma parábola de algo, deve-se lê-la nas entrelinhas. O fato do Sr. Veloso “conhecer outros livros...” além da Bíblia, já nos mostra que sua narrativa terá uma significação diversa e mais ampla do que a do livro sagrado.
Subvertendo o texto bíblico, o juiz começa logo esclarecendo que quem criou o mundo foi o Diabo, não Deus, que apenas “atenuava a obra”. Essa atenuação veio logo: se o capeta criava as trevas, Deus criava a Luz, se o Tinhoso vinha com furacões, o Senhor aparecia com “brisas da tarde”, de maneira que se pode dizer que a criação foi um trabalho de quatro mãos, sendo que o Diabo se ocupou um pouco mais.
Quatro mãos em tudo, até no que foi criado no sexto dia: o homem e a mulher. Ambos, claro, criações do Demo, Deus fornecendo “apenas” a alma.
Nesse ponto é possível fazer uma aproximação entre o mundo demoníaco criado pelo juiz e a maneira de enxergar a realidade, e a representar textualmente, de Machado de Assis. Seus personagens em quase toda sua obra, pelo menos os mais importantes, respondem às situações criadas sempre em função de uma complexa dialética entre o bem e o mal, dialética esta que descobre seu sentido orientador pela necessidade. E, se escolhem invariavelmente o caminho menos nobre, das máscaras e da enganação, quem pode culpá-los? É essa a única resposta sã em um mundo demoníaco, para usar a imagem do conto, um mundo que teima em não fazer sentido. Sobre o resultado dessas escolhas, à que freqüentemente os personagens de Machado são submetidos, Alfredo Bosi afirma:
“A necessidade de proteger-se e de vencer na vida - mola universal - só é satisfeita pela união ostensiva do sujeito com a Aparência dominante. E, por acaso, será lícito culpar esse pobre e vulnerável sujeito porque subiu com a maré do seu tempo para não afogar-se na pobreza, na obscuridade e na humilhação?” (BOSI, 1982: 86)
Mas o conto não é apenas isso. Depois que receberam suas almas, o homem e a mulher mudaram totalmente. Ele, que antes tinha ímpetos de espancar a companheira, e ela, que “cogitava de armar um laço a Adão”, agora, com suas almas, se entretinham contemplando-se e à natureza.
Nesse ponto a narrativa se aproxima da história tradicionalmente contada na Bíblia. Adão e Eva, no paraíso, foram tentados pela serpente que, a serviço do Diabo, oferece a Eva o fruto da “ciência do bem e do mal”. No entanto, e esse desdobramento é o que há de genial no conto, nem ela nem seu companheiro aceitam a fruta sob a alegação de que nada, “nem a ciência, nem o poder, nenhuma ilusão da Terra”, valiam a perda do paraíso. A história do juiz termina com Deus recompensando a postura do casal trazendo-os para perto de si, no céu.
A narrativa do conto dentro do conto termina com reticências, o que faz sentido: reticências, interrogações, surpresa, é o que fica na cabeça do leitor do conto e do ouvinte do juiz ao final da “narração enigmática” e “sem sentindo aparente”.
Essa narração, entretanto, não é tão sem sentido assim ao se pensar de qual cabeça se origina a narração - dentro do conto -, para quem foi dirigida e qual a opinião de Machado sobre a humanidade.
O narrador, o Sr. Veloso, era um juiz. Homem acostumado a ver as iniqüidades da vida e as falsidades do homem. Não seria difícil a tal personagem, que ainda era “dos mais piedosos da cidade”, reconhecer que o que existe por aqui, mais do que um homem feito à imagem de Deus mas condenado por ter comido uma fruta, é uma obra do Demo, algo que “rasteja, babuja e morde”, para usar uma expressão do divino se referindo ao que sobra na Terra quando o primeiro casal vai para o céu.
Já que, além de sério para as coisas sérias, ele era também “jovial”, “amigo da pulha” e “inventivo”, o juiz consegue “sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida”, como afirma Cândido se referindo ao estilo de Machado (CÂNDIDO, 1970: 23). A aproximação dos dois, personagem e autor, não é despropositada. Como afirma Lúcia Miguel Pereira, uma das classes de indivíduos criadas por Machado que escapam à mediocridade geral é a dos que “consideram a vida como um espetáculo e por isso sabem rir dos cálculos dos homens e das rasteiras do destino” (PEREIRA, 1973: 95). Como Machado em seus melhores textos, ou como Brás Cubas e o Conselheiro Aires, o juiz, pessoa que conhece “outros livros”, usa do humor e de idéias aparentemente descabidas para discutir valores universais. No caso, para resumir em poucas palavras um tema complexo, o desacerto do mundo. Como o público de Machado em sua época, o público do juiz não o entende completamente. Tacham-no de galhofeiro, de contador de causos interessantes mas que acabariam em seu significado e interesse quando acaba sua narração. Eles não o entendem.
E como poderiam entender, afinal? É à D. Leonor, a fazendeira, à elite e seus agregados, a todas as elites em todas as partes, que a crítica da narração se dirige, se o problema for abordado de maneira mais “social” e não tão filosófico e universal. Ora, um mundo habitado por criaturas do Demo, onde Deus dá apenas uns “retoques”, parece ser exatamente o mundo de “mil setecentos e tantos”, assim como o mundo do final do século XIX e começo do XX de Machado (isso sem falar no mundo que se tem hoje, mas isso é outra discussão), onde uma pequena elite não trabalha e vive às custas do trabalho escravo ou pessimamente remunerado. Essa leitura mais diretamente “social” e crítica, que é confirmada por Roberto Schwarz em vários romances do escritor carioca, é uma das facetas desse maravilhoso conto.
A “Aparência dominante” citada acima de Bosi, a que os homens deveriam aderir pela ação da sociedade, atua também, é bem verdade, sobre o juiz: ele não fala explicitamente o que pensa daquelas pessoas e da sociedade onde vive. Como Machado, de novo, o personagem se vale de uma narrativa enigmática a qual apenas ele e talvez o frei compreendam o sentido último. Sua máscara é a fusão da narrativa obscura e da incompetência para ler nas entrelinhas de seu público. Ao mesmo tempo em que aponta a ignorância reinante ele se vale dela para passar incólume em sua crítica.
Com essa última observação, fica claro que o que Machado fez, pelo menos de um ponto de vista, digamos, social, foi usar sua história “fantástica” dentro da “real” para ilustrar um dos seus temas prediletos: a exploração do homem pelo homem, o desacerto do mundo. Para conferir ao texto esse tipo de sentido não bastaria contar ao leitor, a nós, apenas a narrativa modificada de Adão e Eva. Machado precisou mostrar a reação da fazendeira e seus convidados, a cumplicidade do frei e do juiz. Precisou também caracterizar o juiz espiritualmente mais do que a todos, já que é de sua “credibilidade” que depende a alegoria: o fato de mais de um parágrafo ter sido usado para tal fim é significativo. Esses elementos narrativos, só possíveis dentro dessa forma - uma história dentro da outra -, funcionam como uma evidência que o Demo ainda nos controla a todos. Os extremos do conto, seu início e seu fim, são essenciais para o tipo de entendimento que o autor queria que seu conto tivesse. Assim, o que o texto narra não é um novo início dos tempos, mas um “os tempos”: a natureza humana agindo da mesma forma sempre. E nisso, exatamente, é que está seu realismo.
Como se vê, a motivação do juiz para narrar sua versão de Adão e Eva parece ser a mesma motivação que Bakhtin encontra para a composição dos textos do gênero da sátira menipéia: “criar situações extraordinárias para provocar e experimentar uma idéia filosófica” (Bakhtin:114). O interessante nesse conto é que, enquanto o juiz com seu relato parece estar simplesmente declamando essa sátira menipéia ao seu público - mesmo que este não o entenda -, Machado com certeza está em um nível de complexidade acima quando encena sua história dentro da história. Sua discussão filosófica, na verdade, aumenta em complexidade com esse recurso formal: se com a história bíblica sua crítica pode ser interpretada universalmente, quando ela é introduzida, no texto do conto, em um ambiente tipicamente brasileiro, o alvo do que está sendo dito se torna também regional.
O fim
O conto “Viver!”, no mesmo livro, tem estrutura formal diferente. Depois de uma pequena introdução que situa a ação no final dos tempos, o que se desenrola é um longo diálogo entre dois personagens, ao estilo do teatro. Um é Ahasverus, o judeu errante, personagem da mitologia cristã que foi condenado a errar até o final dos tempos por Deus pelo crime de não ter ajudado e, na verdade, maltratado Jesus durante seu martírio. O outro personagem é Prometeu, da mitologia clássica grega, que foi condenado por Júpiter a ser eternamente estripado pelo pecado de ter feito “de lodo e água” os primeiros homens e de ter trazido a eles, do Olimpo, o fogo.
O diálogo entre os personagens segue uma direção que é, basicamente, a seguinte. Ahasverus, feliz por ver terminar sua peregrinação, seu profundo fastio da existência, conta sua história para Prometeu. A passagem eterna dos anos, a monotonia das alternativas que se apresentavam para a humanidade, fizeram com que o personagem não mais distinguisse as “flores das urzes”. Tudo se funde, então, num único e trágico destino da humanidade, esse tédio da condição humana, onde enganação se sobrepõe à enganação e o “espetáculo da alegria” é a mesma coisa que os “discursos de um doudo”. Ao contrário do juiz de “Adão e Eva” que, como Machado - ao menos em seus últimos romances e contos -, entende e acha graça do espetáculo entediante de “cálculos e choques” (Pereira, 1973: 78), Ahasverus está em conflito com o tempo aniquilante e exigente e a humanidade que a ele se submete cometendo sempre os mesmos erros, e não vê onde, afinal, está a piada.
Não encontra a piada mas pensa ter encontrado o piadista na figura de Prometeu, já que este confessa ter começado toda essa horrível confusão quando deu origem aos homens e lhes deu o poder, o fogo. A comparação, então, com o conto anterior é inevitável: Prometeu, “artífice do inferno” como a ele se refere Ahasverus, é uma espécie de Demo que, criando a humanidade e lhe conferindo poder, é a “origem dos males”, origem do eterno tédio e desesperança dos habitantes do planeta. Se o pecado do judeu errante foi, ao querer “realçar seu zelo” frente aos outros, agir de maneira cruel para com Jesus durante seu martírio, mais infame é o criador de todo o mal, da vida e da sociedade, da Natureza enfim. Essa natureza das coisas é que é, para Machado, a causa principal dos males do mundo. Como aponta Bosi, comentando o sonho de Cubas em “Memórias Póstumas”, ela é a causadora das máscaras entre os homens:
“A Natureza, fonte primeira de toda a história dos homens, aparece como um ser frio, egoísta, surdo às angústias daqueles que ela mesma gerou. Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A máscara é, portanto, uma defesa imprescindível, que vem de longe, de muito longe, como a pele do urso e a cabana de paus arrumadas pelo selvagem para se proteger do sol, do vento, da chuva” (BOSI, 1982: 87).
Vem de longe, de fato. Poderia se dizer, dentro do espírito de comparação do estudo, que vem do conto anterior, do início dos tempos, e que é uma constante, a única constante em um universo cuja regra geral é a transformação. Esse egoísmo passa por todos os séculos e chega ao final dos tempos incólume: não é essa a motivação dos dois personagens do conto, sobreviver o melhor possível? Como se verá, é a esse egoísmo, essa lei generalizada, que o título do conto faz referência.
Mas o diálogo continua. Irado com a descoberta, Ahasverus prende novamente Prometeu nas correntes. A situação se inverte quando, prometendo ao judeu um reino novo, uma nova humanidade, melhor que essa nossa, Prometeu o convence a o liberar dos grilhões. Essa humanidade, no entanto, não será tão nova assim. Terá na figura de Ahasverus, o rei dessa nova criação, um elo com a anterior. Isso já é um indício de onde Machado nos quer levar: Prometeu, tencionando criar uma nova humanidade - como o Demo criou a nossa -, já começa metendo os pés pelas mãos, fundando já essa nova criação em promessas de poder fúteis que lembram, expandindo a idéia, o que vinha junto à maçã oferecida à Eva: poder, rivalidade, competição.
Ahasverus, que estava a ponto de aceitar a morte - estava mesmo? - entrega os pontos e abraça mais uma ilusão - a nova humanidade, a possibilidade de ser rei - mesmo tendo, ao longo de sua vida eterna, observado os homens cometerem sempre esse mesmo erro, sempre achando que nesse mundo as escolhas existem e que o amanhã será melhor e diferente e não apenas variações do mesmo tema.
Como se vê, também os dois personagens do conto estão sob a lei do egoísmo citada acima. Eles querem viver e, para isso, se iludem, convencem, prometem. É essa lei que faz os personagens de Machado interagirem com o mundo. É a ela que estão todos submetidos.
Os dois contos analisados possuem, então, vários motes em comum. A cegueira intrínseca ao homem - Ahasverus e D. Leonor -, a eterna exploração do homem pelo homem como a mola que move a civilização, a fugacidade das coisas mais belas e mais terríveis, a falta de diferença nas escolhas, tudo isso está presente nos dois textos em maior ou menor escala.
O texto desse “Viver!” termina com duas águias (presentes já no início) a observar e lamentar a condição humana que, mesmo com uma eternidade de provas de que o motor por trás das sociedades e pessoas é a pura sobrevivência, ainda “sonha com a vida”. Sonha com a vida, mas não com a real, e sim com uma sonhada, diferente e melhor.
Há ainda que apontar uma diferença na forma de um conto em relação ao outro. O formato de teatro de “Viver!” acaba por fortalecer, a meu ver, seu caráter “machadiano”. Isso porque, na medida que se apóia apenas no diálogo, sem um narrador a apontar reações emocionais com mais precisão, torna a intenção do texto ainda mais obscura e enigmática, tendo o leitor que procurar a lógica e a motivação dos personagens. Como a vida, esse conto de Machado nos pede que preenchamos as lacunas de significado e as elipses do diálogo, de maneira que aquilo que um leitor vê, outro possivelmente não veja. “Adão e Eva”, porquanto seja também enigmático, é menos obscuro em seu sentido. Sua alegoria é mais clara: o Demônio criar o mundo não é, afinal, uma coisa tão difícil de absorver para quem caminha sobre este planeta. A prosa do conto, ao mostrar reações e fornecer descrições, garante também esse maior entendimento.
Bibliografia
Assis, Machado de. “Adão e Eva” e “Viver!”. In Várias Histórias. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2002, p. 87-97.
Bakhtin, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Forense Universitária.
Bosi, Alfredo. “A máscara e a fenda”. In A máscara e a fenda. Machado de Assis – antologia e estudos. São Paulo: Ática, 1982.
Cândido, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
Lages, Susana Kampff. “Diabolias da Dialética – Literatura e sociedade no país do espelho”. In Revista USP. São Paulo: n. 49, p. 126 133, março/maio 2001.
Pereira, Lúcia Miguel. “Machado de Assis”. In Prosa de ficção: de 1870 a 1920. Rio de Janeiro/ Brasília: Livraria José Olympio/ INL, 1973.
Schwarz, Roberto. “Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis”. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2000.
Todos acabam opinando sobre a questão, menos frei Bento, que “toca viola”, e o juiz de fora, o Sr. Veloso. Esse afirma que a questão não pode ser posta nesses termos já que “as cousas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que contado no primeiro livro”, o Velho Testamento.
O que se segue, então, é o Sr. Veloso recontando uma parte da Bíblia. Antes, porém, alguns detalhes do texto são um indício do tipo de narrativa que se dará. Em primeiro lugar, é preciso notar que, enquanto em todos os outros presentes a revelação do juiz Veloso de que a Bíblia estava errada causou espanto, no frei - justamente no frei, homem da igreja e que, teoricamente, deveria ficar mais indignado com isso -, que o conhecia, um sorriso foi o resultado. Esse sorriso é significativo: indica aprovação, certa cumplicidade, como se ele soubesse o teor do que seria dito e aquela fosse a ocasião ideal para dizer. Isso, aliás, não é impossível já que, como foi dito, ele conhecia o juiz. Do Sr. Veloso também se afirma que é “amigo da pulha”, desde que “curial e delicada”, assim como “jovial”, “inventivo” e, importante, “um dos mais piedosos sujeitos da cidade”. Voltarei a essas características.
Sobre a narrativa que se seguirá, o frei afirma que terá “boa significação”. Machado, por meio de seus personagens, de uma maneira direta que não lhe é peculiar, parece estar nos avisando do que se trata: é uma história com significações ocultas, uma parábola de algo, deve-se lê-la nas entrelinhas. O fato do Sr. Veloso “conhecer outros livros...” além da Bíblia, já nos mostra que sua narrativa terá uma significação diversa e mais ampla do que a do livro sagrado.
Subvertendo o texto bíblico, o juiz começa logo esclarecendo que quem criou o mundo foi o Diabo, não Deus, que apenas “atenuava a obra”. Essa atenuação veio logo: se o capeta criava as trevas, Deus criava a Luz, se o Tinhoso vinha com furacões, o Senhor aparecia com “brisas da tarde”, de maneira que se pode dizer que a criação foi um trabalho de quatro mãos, sendo que o Diabo se ocupou um pouco mais.
Quatro mãos em tudo, até no que foi criado no sexto dia: o homem e a mulher. Ambos, claro, criações do Demo, Deus fornecendo “apenas” a alma.
Nesse ponto é possível fazer uma aproximação entre o mundo demoníaco criado pelo juiz e a maneira de enxergar a realidade, e a representar textualmente, de Machado de Assis. Seus personagens em quase toda sua obra, pelo menos os mais importantes, respondem às situações criadas sempre em função de uma complexa dialética entre o bem e o mal, dialética esta que descobre seu sentido orientador pela necessidade. E, se escolhem invariavelmente o caminho menos nobre, das máscaras e da enganação, quem pode culpá-los? É essa a única resposta sã em um mundo demoníaco, para usar a imagem do conto, um mundo que teima em não fazer sentido. Sobre o resultado dessas escolhas, à que freqüentemente os personagens de Machado são submetidos, Alfredo Bosi afirma:
“A necessidade de proteger-se e de vencer na vida - mola universal - só é satisfeita pela união ostensiva do sujeito com a Aparência dominante. E, por acaso, será lícito culpar esse pobre e vulnerável sujeito porque subiu com a maré do seu tempo para não afogar-se na pobreza, na obscuridade e na humilhação?” (BOSI, 1982: 86)
Mas o conto não é apenas isso. Depois que receberam suas almas, o homem e a mulher mudaram totalmente. Ele, que antes tinha ímpetos de espancar a companheira, e ela, que “cogitava de armar um laço a Adão”, agora, com suas almas, se entretinham contemplando-se e à natureza.
Nesse ponto a narrativa se aproxima da história tradicionalmente contada na Bíblia. Adão e Eva, no paraíso, foram tentados pela serpente que, a serviço do Diabo, oferece a Eva o fruto da “ciência do bem e do mal”. No entanto, e esse desdobramento é o que há de genial no conto, nem ela nem seu companheiro aceitam a fruta sob a alegação de que nada, “nem a ciência, nem o poder, nenhuma ilusão da Terra”, valiam a perda do paraíso. A história do juiz termina com Deus recompensando a postura do casal trazendo-os para perto de si, no céu.
A narrativa do conto dentro do conto termina com reticências, o que faz sentido: reticências, interrogações, surpresa, é o que fica na cabeça do leitor do conto e do ouvinte do juiz ao final da “narração enigmática” e “sem sentindo aparente”.
Essa narração, entretanto, não é tão sem sentido assim ao se pensar de qual cabeça se origina a narração - dentro do conto -, para quem foi dirigida e qual a opinião de Machado sobre a humanidade.
O narrador, o Sr. Veloso, era um juiz. Homem acostumado a ver as iniqüidades da vida e as falsidades do homem. Não seria difícil a tal personagem, que ainda era “dos mais piedosos da cidade”, reconhecer que o que existe por aqui, mais do que um homem feito à imagem de Deus mas condenado por ter comido uma fruta, é uma obra do Demo, algo que “rasteja, babuja e morde”, para usar uma expressão do divino se referindo ao que sobra na Terra quando o primeiro casal vai para o céu.
Já que, além de sério para as coisas sérias, ele era também “jovial”, “amigo da pulha” e “inventivo”, o juiz consegue “sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida”, como afirma Cândido se referindo ao estilo de Machado (CÂNDIDO, 1970: 23). A aproximação dos dois, personagem e autor, não é despropositada. Como afirma Lúcia Miguel Pereira, uma das classes de indivíduos criadas por Machado que escapam à mediocridade geral é a dos que “consideram a vida como um espetáculo e por isso sabem rir dos cálculos dos homens e das rasteiras do destino” (PEREIRA, 1973: 95). Como Machado em seus melhores textos, ou como Brás Cubas e o Conselheiro Aires, o juiz, pessoa que conhece “outros livros”, usa do humor e de idéias aparentemente descabidas para discutir valores universais. No caso, para resumir em poucas palavras um tema complexo, o desacerto do mundo. Como o público de Machado em sua época, o público do juiz não o entende completamente. Tacham-no de galhofeiro, de contador de causos interessantes mas que acabariam em seu significado e interesse quando acaba sua narração. Eles não o entendem.
E como poderiam entender, afinal? É à D. Leonor, a fazendeira, à elite e seus agregados, a todas as elites em todas as partes, que a crítica da narração se dirige, se o problema for abordado de maneira mais “social” e não tão filosófico e universal. Ora, um mundo habitado por criaturas do Demo, onde Deus dá apenas uns “retoques”, parece ser exatamente o mundo de “mil setecentos e tantos”, assim como o mundo do final do século XIX e começo do XX de Machado (isso sem falar no mundo que se tem hoje, mas isso é outra discussão), onde uma pequena elite não trabalha e vive às custas do trabalho escravo ou pessimamente remunerado. Essa leitura mais diretamente “social” e crítica, que é confirmada por Roberto Schwarz em vários romances do escritor carioca, é uma das facetas desse maravilhoso conto.
A “Aparência dominante” citada acima de Bosi, a que os homens deveriam aderir pela ação da sociedade, atua também, é bem verdade, sobre o juiz: ele não fala explicitamente o que pensa daquelas pessoas e da sociedade onde vive. Como Machado, de novo, o personagem se vale de uma narrativa enigmática a qual apenas ele e talvez o frei compreendam o sentido último. Sua máscara é a fusão da narrativa obscura e da incompetência para ler nas entrelinhas de seu público. Ao mesmo tempo em que aponta a ignorância reinante ele se vale dela para passar incólume em sua crítica.
Com essa última observação, fica claro que o que Machado fez, pelo menos de um ponto de vista, digamos, social, foi usar sua história “fantástica” dentro da “real” para ilustrar um dos seus temas prediletos: a exploração do homem pelo homem, o desacerto do mundo. Para conferir ao texto esse tipo de sentido não bastaria contar ao leitor, a nós, apenas a narrativa modificada de Adão e Eva. Machado precisou mostrar a reação da fazendeira e seus convidados, a cumplicidade do frei e do juiz. Precisou também caracterizar o juiz espiritualmente mais do que a todos, já que é de sua “credibilidade” que depende a alegoria: o fato de mais de um parágrafo ter sido usado para tal fim é significativo. Esses elementos narrativos, só possíveis dentro dessa forma - uma história dentro da outra -, funcionam como uma evidência que o Demo ainda nos controla a todos. Os extremos do conto, seu início e seu fim, são essenciais para o tipo de entendimento que o autor queria que seu conto tivesse. Assim, o que o texto narra não é um novo início dos tempos, mas um “os tempos”: a natureza humana agindo da mesma forma sempre. E nisso, exatamente, é que está seu realismo.
Como se vê, a motivação do juiz para narrar sua versão de Adão e Eva parece ser a mesma motivação que Bakhtin encontra para a composição dos textos do gênero da sátira menipéia: “criar situações extraordinárias para provocar e experimentar uma idéia filosófica” (Bakhtin:114). O interessante nesse conto é que, enquanto o juiz com seu relato parece estar simplesmente declamando essa sátira menipéia ao seu público - mesmo que este não o entenda -, Machado com certeza está em um nível de complexidade acima quando encena sua história dentro da história. Sua discussão filosófica, na verdade, aumenta em complexidade com esse recurso formal: se com a história bíblica sua crítica pode ser interpretada universalmente, quando ela é introduzida, no texto do conto, em um ambiente tipicamente brasileiro, o alvo do que está sendo dito se torna também regional.
O fim

O conto “Viver!”, no mesmo livro, tem estrutura formal diferente. Depois de uma pequena introdução que situa a ação no final dos tempos, o que se desenrola é um longo diálogo entre dois personagens, ao estilo do teatro. Um é Ahasverus, o judeu errante, personagem da mitologia cristã que foi condenado a errar até o final dos tempos por Deus pelo crime de não ter ajudado e, na verdade, maltratado Jesus durante seu martírio. O outro personagem é Prometeu, da mitologia clássica grega, que foi condenado por Júpiter a ser eternamente estripado pelo pecado de ter feito “de lodo e água” os primeiros homens e de ter trazido a eles, do Olimpo, o fogo.
O diálogo entre os personagens segue uma direção que é, basicamente, a seguinte. Ahasverus, feliz por ver terminar sua peregrinação, seu profundo fastio da existência, conta sua história para Prometeu. A passagem eterna dos anos, a monotonia das alternativas que se apresentavam para a humanidade, fizeram com que o personagem não mais distinguisse as “flores das urzes”. Tudo se funde, então, num único e trágico destino da humanidade, esse tédio da condição humana, onde enganação se sobrepõe à enganação e o “espetáculo da alegria” é a mesma coisa que os “discursos de um doudo”. Ao contrário do juiz de “Adão e Eva” que, como Machado - ao menos em seus últimos romances e contos -, entende e acha graça do espetáculo entediante de “cálculos e choques” (Pereira, 1973: 78), Ahasverus está em conflito com o tempo aniquilante e exigente e a humanidade que a ele se submete cometendo sempre os mesmos erros, e não vê onde, afinal, está a piada.
Não encontra a piada mas pensa ter encontrado o piadista na figura de Prometeu, já que este confessa ter começado toda essa horrível confusão quando deu origem aos homens e lhes deu o poder, o fogo. A comparação, então, com o conto anterior é inevitável: Prometeu, “artífice do inferno” como a ele se refere Ahasverus, é uma espécie de Demo que, criando a humanidade e lhe conferindo poder, é a “origem dos males”, origem do eterno tédio e desesperança dos habitantes do planeta. Se o pecado do judeu errante foi, ao querer “realçar seu zelo” frente aos outros, agir de maneira cruel para com Jesus durante seu martírio, mais infame é o criador de todo o mal, da vida e da sociedade, da Natureza enfim. Essa natureza das coisas é que é, para Machado, a causa principal dos males do mundo. Como aponta Bosi, comentando o sonho de Cubas em “Memórias Póstumas”, ela é a causadora das máscaras entre os homens:
“A Natureza, fonte primeira de toda a história dos homens, aparece como um ser frio, egoísta, surdo às angústias daqueles que ela mesma gerou. Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A máscara é, portanto, uma defesa imprescindível, que vem de longe, de muito longe, como a pele do urso e a cabana de paus arrumadas pelo selvagem para se proteger do sol, do vento, da chuva” (BOSI, 1982: 87).
Vem de longe, de fato. Poderia se dizer, dentro do espírito de comparação do estudo, que vem do conto anterior, do início dos tempos, e que é uma constante, a única constante em um universo cuja regra geral é a transformação. Esse egoísmo passa por todos os séculos e chega ao final dos tempos incólume: não é essa a motivação dos dois personagens do conto, sobreviver o melhor possível? Como se verá, é a esse egoísmo, essa lei generalizada, que o título do conto faz referência.
Mas o diálogo continua. Irado com a descoberta, Ahasverus prende novamente Prometeu nas correntes. A situação se inverte quando, prometendo ao judeu um reino novo, uma nova humanidade, melhor que essa nossa, Prometeu o convence a o liberar dos grilhões. Essa humanidade, no entanto, não será tão nova assim. Terá na figura de Ahasverus, o rei dessa nova criação, um elo com a anterior. Isso já é um indício de onde Machado nos quer levar: Prometeu, tencionando criar uma nova humanidade - como o Demo criou a nossa -, já começa metendo os pés pelas mãos, fundando já essa nova criação em promessas de poder fúteis que lembram, expandindo a idéia, o que vinha junto à maçã oferecida à Eva: poder, rivalidade, competição.
Ahasverus, que estava a ponto de aceitar a morte - estava mesmo? - entrega os pontos e abraça mais uma ilusão - a nova humanidade, a possibilidade de ser rei - mesmo tendo, ao longo de sua vida eterna, observado os homens cometerem sempre esse mesmo erro, sempre achando que nesse mundo as escolhas existem e que o amanhã será melhor e diferente e não apenas variações do mesmo tema.
Como se vê, também os dois personagens do conto estão sob a lei do egoísmo citada acima. Eles querem viver e, para isso, se iludem, convencem, prometem. É essa lei que faz os personagens de Machado interagirem com o mundo. É a ela que estão todos submetidos.
Os dois contos analisados possuem, então, vários motes em comum. A cegueira intrínseca ao homem - Ahasverus e D. Leonor -, a eterna exploração do homem pelo homem como a mola que move a civilização, a fugacidade das coisas mais belas e mais terríveis, a falta de diferença nas escolhas, tudo isso está presente nos dois textos em maior ou menor escala.
O texto desse “Viver!” termina com duas águias (presentes já no início) a observar e lamentar a condição humana que, mesmo com uma eternidade de provas de que o motor por trás das sociedades e pessoas é a pura sobrevivência, ainda “sonha com a vida”. Sonha com a vida, mas não com a real, e sim com uma sonhada, diferente e melhor.
Há ainda que apontar uma diferença na forma de um conto em relação ao outro. O formato de teatro de “Viver!” acaba por fortalecer, a meu ver, seu caráter “machadiano”. Isso porque, na medida que se apóia apenas no diálogo, sem um narrador a apontar reações emocionais com mais precisão, torna a intenção do texto ainda mais obscura e enigmática, tendo o leitor que procurar a lógica e a motivação dos personagens. Como a vida, esse conto de Machado nos pede que preenchamos as lacunas de significado e as elipses do diálogo, de maneira que aquilo que um leitor vê, outro possivelmente não veja. “Adão e Eva”, porquanto seja também enigmático, é menos obscuro em seu sentido. Sua alegoria é mais clara: o Demônio criar o mundo não é, afinal, uma coisa tão difícil de absorver para quem caminha sobre este planeta. A prosa do conto, ao mostrar reações e fornecer descrições, garante também esse maior entendimento.
Bibliografia
Assis, Machado de. “Adão e Eva” e “Viver!”. In Várias Histórias. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2002, p. 87-97.
Bakhtin, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Forense Universitária.
Bosi, Alfredo. “A máscara e a fenda”. In A máscara e a fenda. Machado de Assis – antologia e estudos. São Paulo: Ática, 1982.
Cândido, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
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Pereira, Lúcia Miguel. “Machado de Assis”. In Prosa de ficção: de 1870 a 1920. Rio de Janeiro/ Brasília: Livraria José Olympio/ INL, 1973.
Schwarz, Roberto. “Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis”. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2000.