Em Desvendando os Quadrinhos, Scott McCloud aponta para o perigo de que imagens e palavras, nas HQs, não se complementem, criando um conjunto artístico inferior ao seu potencial original (páginas 48 e 49, acima). Imagens e palavras, a linguagem básica das HQs, se afastariam devido, primeiro, às suas características essenciais e opostas: imagens são informações recebidas, as pessoas não precisam de educação formal para entender uma ilustração; a palavra, por outro lado, é informação que deve ser percebida, coisa que só acontece depois que os símbolos da linguagem são decodificados. Existiria, então, uma dificuldade inerente, estrutural, de unir da melhor forma possível esses dois lados da moeda. Também a necessidade cada vez maior de sofisticação e, acrescentaria, produtividade industrial nos quadrinhos levaria desenhista e roteirista a se especializar em suas áreas, esquecendo-se, muitas vezes, de que apenas a união harmoniosa de seus trabalhos conta a história da melhor forma possível.
Alan Moore não costuma cometer esse erro e não o cometeu tampouco em Lost Girls. Polêmica, descrita como “ficção erótica” na edição que ora a Devir publica, a obra comprova mais uma vez o domínio que o inglês barbudo alcançou sobre os elementos de sua arte.
Os três livros que compõe a HQ são divididos em pequenos capítulos, cada qual com inventivas e diversificadas soluções narrativas. O capítulo um, O espelho, é um bom exemplo. Toda a ação - a apresentação de uma das três personagens principais, Alice, e sua mudança para um hotel austríaco - é mostrada através do reflexo em um espelho. As oito páginas são todas divididas em seis quadrinhos e os personagens e paisagens aparecem somente na medida em que se posicionam em frente ao espelho.
Alan Moore não costuma cometer esse erro e não o cometeu tampouco em Lost Girls. Polêmica, descrita como “ficção erótica” na edição que ora a Devir publica, a obra comprova mais uma vez o domínio que o inglês barbudo alcançou sobre os elementos de sua arte.
Os três livros que compõe a HQ são divididos em pequenos capítulos, cada qual com inventivas e diversificadas soluções narrativas. O capítulo um, O espelho, é um bom exemplo. Toda a ação - a apresentação de uma das três personagens principais, Alice, e sua mudança para um hotel austríaco - é mostrada através do reflexo em um espelho. As oito páginas são todas divididas em seis quadrinhos e os personagens e paisagens aparecem somente na medida em que se posicionam em frente ao espelho.

Nas páginas um (acima) e dois temos o espelho refletindo um mesmo ambiente, o quarto da protagonista. A beirada de uma cama pode ser vista e um diálogo se desenrola entre Alice e o que parece ser uma garotinha, aparentemente sua amante. Parece uma garotinha, pois ela nunca é mostrada de verdade. Podemos inferir que ela está lá pelos balões de diálogo - dois grupos, indicando duas pessoas - assim como pelo conteúdo da conversa. Essa impressão, de que Alice estaria acompanhada, é reforçada na página três, quando, no dia seguinte, o espelho reflete a imagem de duas empregadas arrumando o mesmo quarto. Uma delas confessa que ouviu Lady Fairchild (Alice) falar sobre os “peitinhos” da menina, muito embora não tenha ouvido a própria menina. Mas tudo fica mais confuso, ou mais claro, no final do capítulo. Temos agora uma cena que repete a das primeiras páginas: o espelho reflete a imagem da beira de uma cama onde é possível perceber Alice, que se masturba. Ao final, nos quadros cinco e seis da página sete, ela pergunta, olhando diretamente para o espelho “Como me saí?”, ao que ouve como resposta “Bem, devo dizer que você parecia uma mundana”. De novo, o espelho não reflete ninguém além de Alice no quarto, muito menos uma menina. Mas, então, quem está respondendo? Quem é a interlocutora a quem Alice chama de “querida criança”? Uma possível resposta é que ninguém, ou melhor, a própria Alice, ou sua imaginação. Quando menina, ela entrou no espelho, passou pela iniciação já citada, e o que saiu foi uma versão adulta de si mesma, deixando trancada do lado de lá do espelho a “querida criança”.
Ela quer, como alguns diálogos ao longo do capítulo deixam transparecer, recuperar essa sua versão, principalmente sua juventude - coisa que se reflete até no fato dela querer fazer sexo com essa versão infantil de si, possuir essa versão, se transformar nela -, mas é tarde: a vida só vai num sentido. Nas palavras de Alice (página final do capítulo, ao lado), sobre sua incapacidade de atravessar o espelho e recuperar sua versão juvenil: “A barreira não se dissipa mais, não é? Como uma névoa prateada. Ela não se dissolve”. Mas não será por falta de tentativa que ela não recuperará sua juventude. Mesmo já uma senhora de meia idade, mesmo não podendo recuperar sua juventude de fato, tem uma vida muito diferente das outras matronas: usa drogas, escreve literatura pornográfica e mantém casos com meninas. Sobre a literatura que produz, aliás, é interessante notar que, rejeitando a acepção realista da atividade, um espelho, ela prefere aquela de Platão onde, em suas palavras, “o ideal é a questão; o mundo além do espelho da ficção; esse é mundo real”. Não o reflexo em si, portanto, mas o que há além dele, além do real: seu significado profundo. Aqui, de novo, é possível notar o traço principal da personagem, qual seja, a busca do prazer, seja ele de que forma for, como fuga da realidade, mesmo que ela não veja isso como fuga, mas como a busca da realidade verdadeira, e não esse vale de sombras em que vivemos.
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