
“Axolotl”, conto de J. Cortázar, é uma boa forma de iniciar a discussão. A tensão inerente à relação do EU/OUTRO é um dos assuntos tratados no texto.
Em primeira pessoa, o texto começa com a estranha afirmação de que o narrador, que antes pensava muito em axolotls (espécie de lagarto anfíbio), é agora, na hora da enunciação, o próprio animal. O conto será a história de como o enunciador conheceu os animais, ficou fascinado por eles e, mais ou menos, se transformou em um deles.
Em um zoológico de Paris, o narrador um dia encontra os estranhos animais dentro de um aquário. Sua fascinação por eles é imediata. “Me quedé una hora mirándolos y salí, incapaz de otra cosa”. No dia seguinte, e nos outros, às vezes de manhã e de tarde, conduzido por sua obsessão, o narrador visita os animais confinados no aquário.
O que o levava até o aquário? Nem o narrador sabe ao certo. O que afirma é que desde o primeiro encontro sentia um vínculo com axolotls, “algo infinitamente perdido e distante seguía sin embargo uniéndonos”. Um outro apelo eram os olhos dos animais, de um ouro transparente, “carentes de toda vida pero mirando”. Sobre os olhos ainda, o narrador diz que “me decían de la presencia de uma vida diferente, de outra manera de mirar”. Além disso, o narrador buscava ver nos diminutos pontos áureos, “esa entrada al mundo infinitamente lento e remoto de las criaturas rosadas”.
Tudo isso somado, mais o fato do narrador fazer verdadeira peregrinação diária ao aquário, já indica, quase que claramente, uma das imagens que o autor pretende levar ao leitor: o que está sendo narrado é o fiel que procura em sua igreja, a sala dos aquários, diante de seu objeto sagrado, não uma cruz mas um bando de animais confinados por quatro paredes de vidro, transcender desse nosso mundo material. Os olhos áureos sem vida e, ao mesmo tempo e incrivelmente, tão transcendentais e potencialmente portadores de uma “vida diferente”, são a maior prova dessa intenção do autor e, claro, um dos mistérios do conto.
Fortalecendo essa interpretação, outra passagem é significativa: “Los ojos de oro seguían ardiendo con su dulce, terrible luz; seguían mirándome desde una profundidad insondable que me daba vértigo”.
Como um fiel diante da verdade suprema e, conseqüentemente, da autoridade suprema de Deus, o narrador sente fascinação e temor dos axolotl e seus olhos.
Não apenas isso. Como que escrevendo a bíblia de uma nova religião, suas histórias e mitos, e apoiando-se unicamente nos inexpressivos e imóveis animais (o que, aliás, não é tão diferente de se apoiar em um homem morto em uma cruz), o narrador já imagina toda uma fantasmagoria em torno dos axolotl. Que eles estavam conscientes, escravos de seus corpos, incapazes de se comunicar e que pediam ao homem diante do aquário, o narrador, que os salvassem.
Claro, há aqui um processo de fetichização, ou ao menos sua ilustração pela literatura. Pode-se dizer que o homem transfere algo que está nele, sua força, sua capacidade de fazer as coisas e mudar sua vida e sua sociedade, para um objeto inanimado (no caso, um animal, mas que, coincidentemente, é quase inanimado, já que se mexe muito pouco).
Tudo muito simples, certo? O conto é uma crítica à fetichização que o homem está condenado (está?) a praticar sempre, dando a outros o poder que é dele. Na verdade não, já que a história não acaba por aqui.

Um dia, quando visitava os axolotl na sala dos aquários, algo de incrível ocorreu. “Sin transición, sin sorpresa, vi mi cara contra el vidrio, em vez del axolotil vi mi cara contra el vidrio, la vi fuera del acuario, la vi del otro lado del vidrio”. Poder-se-ia pensar que o humano se transformou no sagrado. Mas não, não há uma transformação. O que acontece no conto é que a consciência do homem passa a ocupar também o axolotl, sem que, no entanto, o homem perca sua consciência. Em poucas palavras, o outro que era olhado assume a consciência de quem olhava, a sua personalidade por assim dizer, e passa a ser também quem olha. Além disso, durante esse processo, a coisa olhada, que era sagrada apenas para quem a olhava e a exaltava como a porta para uma espécie de transcendência, adquire independência, não mais precisando daquela pessoa que a criou como sagrada para existir. Continuando na analogia exposta acima, pode-se dizer que o sagrado criado, a religião criada, depois de um tempo, passa a ter vida própria e não precisa mais de quem a criou para continuar a existir: ela é agora algo que existe socialmente.
Ao mesmo tempo, o narrador, agora um axolotl que olha ao seu antigo EU de dentro do aquário, faz a terrível constatação de que tudo que ele projetava no animal, que este seria o portador de uma verdade transcendente e melhor, eram fantasias e que, mesmo sendo agora um axolotl, seguia pensando como antes. Ou seja, sua vida como axolotl de agora era tão sagrada quanto a vida que ele levava como homem. Mais ainda, olhando para seu EU fora do aquário, o narrador percebe, estarrecido, que “ninguna comprensión era posible”, que um homem só pode ter o pensamento de um homem e um axolotl só pode ter o pensamento de um axolotl. Fora essa algo deprimente constatação, tudo o que sobra a quem olha os animais dentro do aquário é teorizar sobre eles, impondo-lhes características que gostaríamos que tivessem e não as que de fato têm. Quando o autor confere ao axolotl a “personalidade” do homem que olhava o aquário, ele está dizendo exatamente isso: conferimos às coisas, aos nossos fetiches, apenas o que temos, nunca mais do que somos, nunca um ilusório sagrado transcendental.
Toda essa mágica de realismo fantástico tem, claro, intenções outras que não apenas confundir o leitor. São, em primeiro lugar, como já foi dito acima, uma crítica ao fetichismo, à religião e aos crentes em geral.
Pode-se aqui usar Freud e dizer que Cortazar e o psicanalista compartilham da crítica da fase religiosa do ser humano, quando a onipotência é transferida a uma figura divina o que, como se viu no conto, é necessariamente um processo de auto-engano. Por outro lado, não é possível dizer que, como Freud, Cortazar confia no desmascaramento que o iluminismo e a ciência podem causar nos dogmas da religião (inclusive, no caso, a transcendência que o axolotl seria o portador). Na verdade, ao dotar seu fetiche, o axolotl, de independência e consciência, justamente a consciência transferida do fiel, o autor está dizendo que a ciência não é o bastante, não é o instrumento adequado para proporcionar a destruição do mito. Este, mesmo sem a atenção do homem do lado de fora do vidro, sobrevive, é um fato da vida, ou ao menos, como já foi dito, uma construção social. A ciência, então, aparece como outro axolotl, outro depositário de esperanças, de uma pretensa verdade inegável, por parte do homem, que se mostra ineficaz.
Como diz Mariátegui sobre esse assunto: “La experiência racionalista há tenido esta paradójica eficácia de conducir a la humanidad a la desconsolada convicción de que la Razón no puede darle ningún camino. El racionalismo no ha servido sino para desacreditar a la razón.”(Mariátegui, 1974: 28).
Ao final do conto, o homem, que antes visitava o aquário diariamente, aparece cada vez menos. Claro: como uma religião que perdeu seu encanto, sua magia, o visitante enxerga cada vez menos de si nos axolotl que, apesar de terem parte da personalidade do visitante, continuam a ter suas vidas de axolotl. Nas palavras do narrador, agora animal de aquário: “las puentes están cortados entre él y yo, porque lo que era su obsesión es ahora um axolotl ajeno a su vida de hombre”.
Como se vê, o que ocorre no conto é uma série de desilusões. Aparentemente nada se salva: o sagrado não é sagrado e a ciência e o materialismo também não respondem com uma verdade desejada já que o homem não consegue olhar além e conhecer, de fato, o que está dentro do aquário, os axolotl. Aliás, uma separação entre o objeto e o sujeito, condição necessária para a análise positivista de qualquer coisa, não se processa no conto: o observador se torna o objeto observado, em um processo que não tem nada da imparcialidade científica.
Mas dito tudo isso, o que sobra ao ser humano?
Aparentemente, lendo Cortázar, literatura. É ela que, usando desse desastre de transformação de um homem, ou ao menos de uma parte de si, em um animal, denuncia as máscaras e os desmascaramentos, revelando a ilusão de uns e outros e, teoricamente, tornando o homem mais capacitado para a vida.
Mas e aquele OUTRO diferente, estrangeiro, que estava no sofá de nossa casa? O que fazer com ele?
Ora, para um país subdesenvolvido se incluir na modernidade, é necessário que ele encare esse outro, o que é diferente, como o homem faz com o axolotl, e decida o que fazer. Pode-se, claro, ficar fascinado por esse outro a ponto de querer penetrar no enigma representado por ele. Uma outra opção é rejeitar completamente o outro, negando-lhe qualquer tipo de influência em nossa vida. Seria o mesmo que passar direto pelo aquário do axolotl, reconhecendo nele apenas um animal como outros. Como já se disse, há dúvidas de que esse procedimento dê certo em nosso mundo globalizado: as influências chegam hoje em dia cada vez de mais fontes e de forma praticamente inevitável.
Usando a imagem do conto, pode-se dizer que os escritores brasileiros estão fora do aquário, suas preocupações e problemas são necessariamente de alguém de fora do aquário (afinal são brasileiros e não de outra nação). Por mais que queiram entender, imitar o grau de qualidade e transcendência dos grandes autores estrangeiros, só o farão quando não forem mais brasileiros, quando se tornarem os axolotl. Fora isso, eles só podem especular o que são esses olhos de ouro que os fascinam tanto. Mas há problemas em adotar tão sem ressalvas a forma dos axolotl: se o que se queria era representar o brasileiro mas com a qualidade, a técnica, estrangeira, isso já não é mais possível na forma do animal. Isso porque as preocupações de um axolotl, de um estrangeiro, são outras, diferentes, muitas vezes, das de um brasileiro. O pêndulo aqui foi demais para o exterior e o autor perde suas referências, não sabendo mais a quem se dirigir e como. Uma passagem do conto é significativa a transmite bem essa idéia: “El horror vénia - lo supe el mismo momento – de creer-me prisionero em um corpo de axolotl, transmigrado a él com mi pensamiento de honbre, enterrado vivo em um axolotl, condenado a moverme lucidamente entre criaturas insensibles”. Esse é o horror do homem que, sem saber o que é, tenta ser outra coisa. Transforma-se então nessa outra coisa, mas com a consciência ainda do que era. Não sendo completamente nem uma coisa nem outra, não tendo um passado e referências, não pode se expressar, ficando limitado ao resplendor dourado dos olhos do axolotl.
Há ainda uma terceira opção entre esses extremos. É possível também, aos países subdesenvolvidos, adotar graus de consciência do atraso, incorporando esse atraso (econômico, cultural, social) às obras literárias, mas não de forma positiva, triunfalista, mas de forma crítica. Transformar a realidade nossa em um campo do universal, utilizar as técnicas estrangeiras para dizer algo de nós.
Mas isso não está posto no conto. Ou melhor, o conto enquanto obra literária é essa terceira opção, mas essa terceira opção não é abordada diretamente na narrativa.
Referências Bibliográficas
CANDIDO, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento” In: A Educação pela Noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
CORTÁZAR, Júlio. “Axolotl”. In: Cuentos completos. Madrid, Alfaguara, 1994.
Freud, Sigmund. “O estranho”. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Edição Standard). Vol. XVII. Rio de Janeiro, Imago Editora.
Mariátegui, José Carlos. “El hombre y el mito”. In: Ensayos Escogidos. Lima: Editora Universo, 1974, pp. 28-34.
Marx, Karl e Engels, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo, Nova Stella, 1990.LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru: EDUSC, 2002.
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