
Seja como for, é indiscutível que Fernando Pessoa, com seus heterônimos, foi um dos poetas que mais problematizou o que é verdade e o que é mentira (e o que é fingimento) no texto literário. Essa discussão, que estava, claro, em seus textos, estava talvez mais explicitamente na maneira com que ele produzia, ou seja, usando suas várias “personas”, cada uma com sua biografia, filosofia, estilo etc. Há quem veja nisso um sintoma da consciência contemporânea - fragmentária - que nascia no final do século XIX, começo do XX. Um dos poucos casos de múltipla personalidade registrados e um Fernando Pessoa que funcionaria como imã para espíritos desgarrados, e criativos, também são teorias não descartadas.
O mundo é um lugar estranho, e imagino que tudo seja possível. De minha parte, usarei de novo Lourenço para dar uma visão um tanto mais comum sobre Pessoa e seus diversos eus. Segundo ele, é preciso sempre ter em mente que “Alberto Caeiro, Reis, Campos, mas igualmente Fernando Pessoa - ele mesmo - são só (e que outra coisa poderiam ser?) os seus poemas” (Lourenço, 2000: 29). Simples assim. Seus heterônimos são apenas recursos literários que o poeta utiliza para tentar transmitir algum conteúdo.
Vejamos como isso se dá em Alberto Caeiro.
Primeiro poema de “Poemas Inconjuntos”, de Alberto Caeiro (Publicado em ATHENA, número 04, janeiro de 1925)
Alberto Caeiro (1889-1915), de acordo com a biografia criada por Pessoa, teria nascido em Lisboa, mas morado toda sua vida no campo. Não teve profissão definida e sua educação foi muito pouca. Como afirma Massaud Moisés, existe nítida coerência entre a biografia inventada para o poeta e os poemas que levam sua assinatura: “para tão curta vida, quase toda ela transcorrida no campo, para tal biótipo e para um dia-a-dia sem problemas e cuidados, uma poesia logo tornada razão de tudo” (MOISSÉS, 1987:26). Ou seja, para um indivíduo que viveu muito pouco, não tendo tempo para sentir os dissabores da vida, e que passou todo esse pouco tempo no campo, sem trabalhar e sem maiores preocupações, faz sentido que sua poesia englobe todos os aspectos de sua existência, que funcione como instrumento ou lente por onde ele observa e traduz o mundo. Também faz sentido que, tal qual acontece com os seres na natureza, ele use dos sentidos, negando o pensamento racionalista e “humano” que de tudo desconfia, para chegar à verdade.
Essa postura está expressa logo nos primeiros versos do poema analisado que, sem subterfúgios estilísticos complexos, começa a demonstrar de que maneira o poeta enxerga a realidade.
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
Para enxergar de fato as árvores, o rio, as flores, os campos, as coisas do mundo, não é suficiente para o poeta apenas utilizar os sentido da visão. Para olhar essas coisas como elas são é preciso um outro fator. Mas que fator é esse? Ele logo nos esclarece nos versos seguintes.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Como se pode perceber por estes versos, para o poeta coisas não são idéias. Coisas são coisas. Uma demonstração filosófica da realidade, por meio de idéias, é sempre insuficiente para demonstrar a realidade.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
Com a vida baseada em pressupostos filosóficos, não naturais, cada um de nós é, para o poeta, como um mundo - uma cave, um lugar escuro debaixo do chão, um lugar isolado. Não há a convivência básica e universal de apenas se estar na natureza.
Com esses versos iniciais já é possível perceber que o poema é também uma crítica a maneira ocidental de encarar o mundo, sempre procurando explicações racionais para tudo, sempre procurando encaixar as coisas em teorias mais gerais. É, no fundo, uma crítica á maneira aristotélica e/ou positivista de ver o mundo.
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Esses versos finais, que remetem ou que são quase uma repetição dos versos cinco e seis, de novo se referem à idéia principal do texto que, em termos simples, pode ser traduzida pela equação abaixo.
estrutura filosófica ocidental (e qualquer conjunto de idéias que pretenda entender a realidade) = SONHO (apenas)
Afirmar, como faz o poeta, que o mundo só precisa ser sentido - no caso do poema, apenas visto - e não intelectualizado, pensado, é, em si, uma maneira de intelectualizar o assunto, “filosofar”. De acordo com Moissés, o “poeta quer abolir o pensamento, pois o pensamento significa atentar contra a simplicidade das coisas, contra a Natureza, que existe para ser vista e não para ser pensada. Mas pensa para o dizer, é como o pensamento, é com o pensamento, que manifesta seu desejo. Aí o seu processo, o seu drama”(MOISSÉS, 1987:28).
Essa aparente contradição entre o desejo de não pensar para apreender o mundo e a situação real de pensar para fazê-lo é um primeiro distanciamento entre o poeta e sua obra. Esse distanciamento, claro, é o que torna possível a obra ser feita mas, mesmo assim, não deixa de ser uma contradição patente ao leitor atento.
Só que Caeiro, o pretenso autor dos versos, não existe “na natureza”. Ele é uma criação intelectual de Pessoa. Temos, então, mais um nível de abstração ou de distanciamento entre o poeta, que é Pessoa e não Caeiro, e sua obra, o poema em si.
Por fim, se se quer chegar a esse extremo, Pessoa tem que utilizar uma outra criação intelectual, anatural, para criar Caeiro (que É esse e outros poemas com seu nome): a linguagem, a língua portuguesa. Temos, então, um terceiro distanciamento intelectual entre Pessoa e o poema.
Uma conclusão
Deixando explícitos os níveis de distanciamento utilizados por Pessoa para produzir seu poema por meio de Caeiro, mais fácil fica entender o quanto o autor depende de suas personas - meras ferramentas - para manifestar todos os pontos de vista filosóficos, estéticos, artísticos que entupiam sua cabeça. Ao mesmo tempo, esse tipo de análise torna ainda mais evidente algo que, afinal, é óbvio: todos os heterônimos são Pessoa.
Isso, por sua vez, levanta outra questão. Na medida que o poeta defendia com suas personas filosofias e modos de encarar a vida tão distintos, até que ponto Pessoa era um sofista, atirando para todos os lados em nome da arte, não importando se se chegava a alguma espécie de verdade ou “apenas” a uma poesia. Dessas que ficam para a posteridade por mais uns mil anos.
Bibliografia
Moisés, Massaud, “Introdução”. In: O guardador de rebanhos e outros poemas. Brasil: Círculo do Livro, 1987.
Lourenço, Eduardo. “Fernando Pessoa Revisitado”. Lisboa: Gradiva, 2000.
Um comentário:
Vale lembrar que a esquizofrenia como método é sempre um caminhar pelo "razor's edge" [fio da navalha]. Não sei quanto disso é consciente e nem se pode ser chamado de método.
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