O conto “Adão e Eva” se passa num engenho na Bahia, “pelos anos de mil setecentos e tantos”. Durante uma festa, um homem demonstra curiosidade sobre qual tipo de doce está sendo servido. Isso é motivo, então, para uma discussão sobre a curiosidade, se os homens ou as mulheres seriam mais curiosos e de quem seria a culpa pela perda do paraíso.
Todos acabam opinando sobre a questão, menos frei Bento, que “toca viola”, e o juiz de fora, o Sr. Veloso. Esse afirma que a questão não pode ser posta nesses termos já que “as cousas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que contado no primeiro livro”, o Velho Testamento.
O que se segue, então, é o Sr. Veloso recontando uma parte da Bíblia. Antes, porém, alguns detalhes do texto são um indício do tipo de narrativa que se dará. Em primeiro lugar, é preciso notar que, enquanto em todos os outros presentes a revelação do juiz Veloso de que a Bíblia estava errada causou espanto, no frei - justamente no frei, homem da igreja e que, teoricamente, deveria ficar mais indignado com isso -, que o conhecia, um sorriso foi o resultado. Esse sorriso é significativo: indica aprovação, certa cumplicidade, como se ele soubesse o teor do que seria dito e aquela fosse a ocasião ideal para dizer. Isso, aliás, não é impossível já que, como foi dito, ele conhecia o juiz. Do Sr. Veloso também se afirma que é “amigo da pulha”, desde que “curial e delicada”, assim como “jovial”, “inventivo” e, importante, “um dos mais piedosos sujeitos da cidade”. Voltarei a essas características.
Sobre a narrativa que se seguirá, o frei afirma que terá “boa significação”. Machado, por meio de seus personagens, de uma maneira direta que não lhe é peculiar, parece estar nos avisando do que se trata: é uma história com significações ocultas, uma parábola de algo, deve-se lê-la nas entrelinhas. O fato do Sr. Veloso “conhecer outros livros...” além da Bíblia, já nos mostra que sua narrativa terá uma significação diversa e mais ampla do que a do livro sagrado.
Subvertendo o texto bíblico, o juiz começa logo esclarecendo que quem criou o mundo foi o Diabo, não Deus, que apenas “atenuava a obra”. Essa atenuação veio logo: se o capeta criava as trevas, Deus criava a Luz, se o Tinhoso vinha com furacões, o Senhor aparecia com “brisas da tarde”, de maneira que se pode dizer que a criação foi um trabalho de quatro mãos, sendo que o Diabo se ocupou um pouco mais.
Quatro mãos em tudo, até no que foi criado no sexto dia: o homem e a mulher. Ambos, claro, criações do Demo, Deus fornecendo “apenas” a alma.
Nesse ponto é possível fazer uma aproximação entre o mundo demoníaco criado pelo juiz e a maneira de enxergar a realidade, e a representar textualmente, de Machado de Assis. Seus personagens em quase toda sua obra, pelo menos os mais importantes, respondem às situações criadas sempre em função de uma complexa dialética entre o bem e o mal, dialética esta que descobre seu sentido orientador pela necessidade. E, se escolhem invariavelmente o caminho menos nobre, das máscaras e da enganação, quem pode culpá-los? É essa a única resposta sã em um mundo demoníaco, para usar a imagem do conto, um mundo que teima em não fazer sentido. Sobre o resultado dessas escolhas, à que freqüentemente os personagens de Machado são submetidos, Alfredo Bosi afirma:
“A necessidade de proteger-se e de vencer na vida - mola universal - só é satisfeita pela união ostensiva do sujeito com a Aparência dominante. E, por acaso, será lícito culpar esse pobre e vulnerável sujeito porque subiu com a maré do seu tempo para não afogar-se na pobreza, na obscuridade e na humilhação?” (BOSI, 1982: 86)
Mas o conto não é apenas isso. Depois que receberam suas almas, o homem e a mulher mudaram totalmente. Ele, que antes tinha ímpetos de espancar a companheira, e ela, que “cogitava de armar um laço a Adão”, agora, com suas almas, se entretinham contemplando-se e à natureza.
Nesse ponto a narrativa se aproxima da história tradicionalmente contada na Bíblia. Adão e Eva, no paraíso, foram tentados pela serpente que, a serviço do Diabo, oferece a Eva o fruto da “ciência do bem e do mal”. No entanto, e esse desdobramento é o que há de genial no conto, nem ela nem seu companheiro aceitam a fruta sob a alegação de que nada, “nem a ciência, nem o poder, nenhuma ilusão da Terra”, valiam a perda do paraíso. A história do juiz termina com Deus recompensando a postura do casal trazendo-os para perto de si, no céu.
A narrativa do conto dentro do conto termina com reticências, o que faz sentido: reticências, interrogações, surpresa, é o que fica na cabeça do leitor do conto e do ouvinte do juiz ao final da “narração enigmática” e “sem sentindo aparente”.
Essa narração, entretanto, não é tão sem sentido assim ao se pensar de qual cabeça se origina a narração - dentro do conto -, para quem foi dirigida e qual a opinião de Machado sobre a humanidade.
O narrador, o Sr. Veloso, era um juiz. Homem acostumado a ver as iniqüidades da vida e as falsidades do homem. Não seria difícil a tal personagem, que ainda era “dos mais piedosos da cidade”, reconhecer que o que existe por aqui, mais do que um homem feito à imagem de Deus mas condenado por ter comido uma fruta, é uma obra do Demo, algo que “rasteja, babuja e morde”, para usar uma expressão do divino se referindo ao que sobra na Terra quando o primeiro casal vai para o céu.
Já que, além de sério para as coisas sérias, ele era também “jovial”, “amigo da pulha” e “inventivo”, o juiz consegue “sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida”, como afirma Cândido se referindo ao estilo de Machado (CÂNDIDO, 1970: 23). A aproximação dos dois, personagem e autor, não é despropositada. Como afirma Lúcia Miguel Pereira, uma das classes de indivíduos criadas por Machado que escapam à mediocridade geral é a dos que “consideram a vida como um espetáculo e por isso sabem rir dos cálculos dos homens e das rasteiras do destino” (PEREIRA, 1973: 95). Como Machado em seus melhores textos, ou como Brás Cubas e o Conselheiro Aires, o juiz, pessoa que conhece “outros livros”, usa do humor e de idéias aparentemente descabidas para discutir valores universais. No caso, para resumir em poucas palavras um tema complexo, o desacerto do mundo. Como o público de Machado em sua época, o público do juiz não o entende completamente. Tacham-no de galhofeiro, de contador de causos interessantes mas que acabariam em seu significado e interesse quando acaba sua narração. Eles não o entendem.
E como poderiam entender, afinal? É à D. Leonor, a fazendeira, à elite e seus agregados, a todas as elites em todas as partes, que a crítica da narração se dirige, se o problema for abordado de maneira mais “social” e não tão filosófico e universal. Ora, um mundo habitado por criaturas do Demo, onde Deus dá apenas uns “retoques”, parece ser exatamente o mundo de “mil setecentos e tantos”, assim como o mundo do final do século XIX e começo do XX de Machado (isso sem falar no mundo que se tem hoje, mas isso é outra discussão), onde uma pequena elite não trabalha e vive às custas do trabalho escravo ou pessimamente remunerado. Essa leitura mais diretamente “social” e crítica, que é confirmada por Roberto Schwarz em vários romances do escritor carioca, é uma das facetas desse maravilhoso conto.
A “Aparência dominante” citada acima de Bosi, a que os homens deveriam aderir pela ação da sociedade, atua também, é bem verdade, sobre o juiz: ele não fala explicitamente o que pensa daquelas pessoas e da sociedade onde vive. Como Machado, de novo, o personagem se vale de uma narrativa enigmática a qual apenas ele e talvez o frei compreendam o sentido último. Sua máscara é a fusão da narrativa obscura e da incompetência para ler nas entrelinhas de seu público. Ao mesmo tempo em que aponta a ignorância reinante ele se vale dela para passar incólume em sua crítica.
Com essa última observação, fica claro que o que Machado fez, pelo menos de um ponto de vista, digamos, social, foi usar sua história “fantástica” dentro da “real” para ilustrar um dos seus temas prediletos: a exploração do homem pelo homem, o desacerto do mundo. Para conferir ao texto esse tipo de sentido não bastaria contar ao leitor, a nós, apenas a narrativa modificada de Adão e Eva. Machado precisou mostrar a reação da fazendeira e seus convidados, a cumplicidade do frei e do juiz. Precisou também caracterizar o juiz espiritualmente mais do que a todos, já que é de sua “credibilidade” que depende a alegoria: o fato de mais de um parágrafo ter sido usado para tal fim é significativo. Esses elementos narrativos, só possíveis dentro dessa forma - uma história dentro da outra -, funcionam como uma evidência que o Demo ainda nos controla a todos. Os extremos do conto, seu início e seu fim, são essenciais para o tipo de entendimento que o autor queria que seu conto tivesse. Assim, o que o texto narra não é um novo início dos tempos, mas um “os tempos”: a natureza humana agindo da mesma forma sempre. E nisso, exatamente, é que está seu realismo.
Como se vê, a motivação do juiz para narrar sua versão de Adão e Eva parece ser a mesma motivação que Bakhtin encontra para a composição dos textos do gênero da sátira menipéia: “criar situações extraordinárias para provocar e experimentar uma idéia filosófica” (Bakhtin:114). O interessante nesse conto é que, enquanto o juiz com seu relato parece estar simplesmente declamando essa sátira menipéia ao seu público - mesmo que este não o entenda -, Machado com certeza está em um nível de complexidade acima quando encena sua história dentro da história. Sua discussão filosófica, na verdade, aumenta em complexidade com esse recurso formal: se com a história bíblica sua crítica pode ser interpretada universalmente, quando ela é introduzida, no texto do conto, em um ambiente tipicamente brasileiro, o alvo do que está sendo dito se torna também regional.
O fim 
O conto “Viver!”, no mesmo livro, tem estrutura formal diferente. Depois de uma pequena introdução que situa a ação no final dos tempos, o que se desenrola é um longo diálogo entre dois personagens, ao estilo do teatro. Um é
Ahasverus, o judeu errante, personagem da mitologia cristã que foi condenado a errar até o final dos tempos por Deus pelo crime de não ter ajudado e, na verdade, maltratado Jesus durante seu martírio. O outro personagem é
Prometeu, da mitologia clássica grega, que foi condenado por Júpiter a ser eternamente estripado pelo pecado de ter feito “de lodo e água” os primeiros homens e de ter trazido a eles, do Olimpo, o fogo.
O diálogo entre os personagens segue uma direção que é, basicamente, a seguinte. Ahasverus, feliz por ver terminar sua peregrinação, seu profundo fastio da existência, conta sua história para Prometeu. A passagem eterna dos anos, a monotonia das alternativas que se apresentavam para a humanidade, fizeram com que o personagem não mais distinguisse as “flores das urzes”. Tudo se funde, então, num único e trágico destino da humanidade, esse tédio da condição humana, onde enganação se sobrepõe à enganação e o “espetáculo da alegria” é a mesma coisa que os “discursos de um doudo”. Ao contrário do juiz de “Adão e Eva” que, como Machado - ao menos em seus últimos romances e contos -, entende e acha graça do espetáculo entediante de “cálculos e choques” (Pereira, 1973: 78), Ahasverus está em conflito com o tempo aniquilante e exigente e a humanidade que a ele se submete cometendo sempre os mesmos erros, e não vê onde, afinal, está a piada.
Não encontra a piada mas pensa ter encontrado o piadista na figura de Prometeu, já que este confessa ter começado toda essa horrível confusão quando deu origem aos homens e lhes deu o poder, o fogo. A comparação, então, com o conto anterior é inevitável: Prometeu, “artífice do inferno” como a ele se refere Ahasverus, é uma espécie de Demo que, criando a humanidade e lhe conferindo poder, é a “origem dos males”, origem do eterno tédio e desesperança dos habitantes do planeta. Se o pecado do judeu errante foi, ao querer “realçar seu zelo” frente aos outros, agir de maneira cruel para com Jesus durante seu martírio, mais infame é o criador de todo o mal, da vida e da sociedade, da Natureza enfim. Essa natureza das coisas é que é, para Machado, a causa principal dos males do mundo. Como aponta Bosi, comentando o sonho de Cubas em “Memórias Póstumas”, ela é a causadora das máscaras entre os homens:
“A Natureza, fonte primeira de toda a história dos homens, aparece como um ser frio, egoísta, surdo às angústias daqueles que ela mesma gerou. Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A máscara é, portanto, uma defesa imprescindível, que vem de longe, de muito longe, como a pele do urso e a cabana de paus arrumadas pelo selvagem para se proteger do sol, do vento, da chuva” (BOSI, 1982: 87).
Vem de longe, de fato. Poderia se dizer, dentro do espírito de comparação do estudo, que vem do conto anterior, do início dos tempos, e que é uma constante, a única constante em um universo cuja regra geral é a transformação. Esse egoísmo passa por todos os séculos e chega ao final dos tempos incólume: não é essa a motivação dos dois personagens do conto, sobreviver o melhor possível? Como se verá, é a esse egoísmo, essa lei generalizada, que o título do conto faz referência.
Mas o diálogo continua. Irado com a descoberta, Ahasverus prende novamente Prometeu nas correntes. A situação se inverte quando, prometendo ao judeu um reino novo, uma nova humanidade, melhor que essa nossa, Prometeu o convence a o liberar dos grilhões. Essa humanidade, no entanto, não será tão nova assim. Terá na figura de Ahasverus, o rei dessa nova criação, um elo com a anterior. Isso já é um indício de onde Machado nos quer levar: Prometeu, tencionando criar uma nova humanidade - como o Demo criou a nossa -, já começa metendo os pés pelas mãos, fundando já essa nova criação em promessas de poder fúteis que lembram, expandindo a idéia, o que vinha junto à maçã oferecida à Eva: poder, rivalidade, competição.
Ahasverus, que estava a ponto de aceitar a morte - estava mesmo? - entrega os pontos e abraça mais uma ilusão - a nova humanidade, a possibilidade de ser rei - mesmo tendo, ao longo de sua vida eterna, observado os homens cometerem sempre esse mesmo erro, sempre achando que nesse mundo as escolhas existem e que o amanhã será melhor e diferente e não apenas variações do mesmo tema.
Como se vê, também os dois personagens do conto estão sob a lei do egoísmo citada acima. Eles querem viver e, para isso, se iludem, convencem, prometem. É essa lei que faz os personagens de Machado interagirem com o mundo. É a ela que estão todos submetidos.
Os dois contos analisados possuem, então, vários motes em comum. A cegueira intrínseca ao homem - Ahasverus e D. Leonor -, a eterna exploração do homem pelo homem como a mola que move a civilização, a fugacidade das coisas mais belas e mais terríveis, a falta de diferença nas escolhas, tudo isso está presente nos dois textos em maior ou menor escala.
O texto desse “Viver!” termina com duas águias (presentes já no início) a observar e lamentar a condição humana que, mesmo com uma eternidade de provas de que o motor por trás das sociedades e pessoas é a pura sobrevivência, ainda “sonha com a vida”. Sonha com a vida, mas não com a real, e sim com uma sonhada, diferente e melhor.
Há ainda que apontar uma diferença na forma de um conto em relação ao outro. O formato de teatro de “Viver!” acaba por fortalecer, a meu ver, seu caráter “machadiano”. Isso porque, na medida que se apóia apenas no diálogo, sem um narrador a apontar reações emocionais com mais precisão, torna a intenção do texto ainda mais obscura e enigmática, tendo o leitor que procurar a lógica e a motivação dos personagens. Como a vida, esse conto de Machado nos pede que preenchamos as lacunas de significado e as elipses do diálogo, de maneira que aquilo que um leitor vê, outro possivelmente não veja. “Adão e Eva”, porquanto seja também enigmático, é menos obscuro em seu sentido. Sua alegoria é mais clara: o Demônio criar o mundo não é, afinal, uma coisa tão difícil de absorver para quem caminha sobre este planeta. A prosa do conto, ao mostrar reações e fornecer descrições, garante também esse maior entendimento.
BibliografiaAssis, Machado de. “Adão e Eva” e “Viver!”. In Várias Histórias. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2002, p. 87-97.
Bakhtin, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Forense Universitária.
Bosi, Alfredo. “A máscara e a fenda”. In A máscara e a fenda. Machado de Assis – antologia e estudos. São Paulo: Ática, 1982.
Cândido, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
Lages, Susana Kampff. “Diabolias da Dialética – Literatura e sociedade no país do espelho”. In Revista USP. São Paulo: n. 49, p. 126 133, março/maio 2001.
Pereira, Lúcia Miguel. “Machado de Assis”. In Prosa de ficção: de 1870 a 1920. Rio de Janeiro/ Brasília: Livraria José Olympio/ INL, 1973.
Schwarz, Roberto. “Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis”. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2000.