segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Querida G #12,

confesso que não queria escrever isso. Queria que as coisas ficassem como estavam, eu aqui e você aí, separados. Mas acho que aquele clichê terrível é verdadeiro. O tempo cura tudo, e o que era terrível já me parece suportável.
Além disso, outro motivo me leva a balançar essa bandeira branca. Acho que estou com saudade. Só isso explica que não consiga assistir qualquer esporte que use as mãos –seja basquete, vôlei, peteca, queimada e, claro, handebol– sem que, numa rapidez que me espanta, minha mente viaje até você. Mais do que isso, a lista de coisas que me levam até você parece que não pára nunca de aumentar: meninas altas e magras, sorrisos grandes, conversas desconexas (e agradáveis), pintas no rosto, beijos de língua, Smirnoff, Av. Paulista, flores, Marisa Monte etc etc. Quando isso acontece, e acontece com uma regularidade incômoda, me irrito comigo mesmo e procuro algo para te esquecer. Pode ser qualquer coisa, desde que seja intensa: correr uma hora na esteira, me embebedar ou fazer hora extra no serviço sem razão. Funciona por um tempo. Mas, como uma coceira que não dá para coçar (desculpe a péssima comparação, querida), no dia seguinte, alguma outra coisa me faz lembrar de você e aquela lista aumenta um pouco mais.
A verdade, acho, é que as coisas não acabaram bem entre nós. Ou não acabaram, não sei. De qualquer modo, só o que penso é que você, com sua personalidade toda flexível, sorridente e angulosa (fora seu belo corpo anguloso, mas isso é outra história) me tornava mais relaxado, menos sério, menos reto. Você me fazia uma pessoa melhor.
Mas já me estendi demais. Só queria te falar que espero que você esteja bem, agarrando tudo no gol como sempre, e que tenho saudade.

beijos

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Fernando Pessoa, o sofista

De acordo com Eduardo Lourenço (Lourenço, 2000: 23), o poeta é aquele que “escolhe ser através da linguagem”. Não sei, tenho a impressão que boa parte do “ser” que aparece em textos literários são, ou mentiras deslavadas, ou verdades reelaboradas. Não que haja qualquer problema com isso, claro. Se uma mentira ajuda a chegar a alguma verdade ela deve ter o seu valor.
Seja como for, é indiscutível que Fernando Pessoa, com seus heterônimos, foi um dos poetas que mais problematizou o que é verdade e o que é mentira (e o que é fingimento) no texto literário. Essa discussão, que estava, claro, em seus textos, estava talvez mais explicitamente na maneira com que ele produzia, ou seja, usando suas várias “personas”, cada uma com sua biografia, filosofia, estilo etc. Há quem veja nisso um sintoma da consciência contemporânea - fragmentária - que nascia no final do século XIX, começo do XX. Um dos poucos casos de múltipla personalidade registrados e um Fernando Pessoa que funcionaria como imã para espíritos desgarrados, e criativos, também são teorias não descartadas.
O mundo é um lugar estranho, e imagino que tudo seja possível. De minha parte, usarei de novo Lourenço para dar uma visão um tanto mais comum sobre Pessoa e seus diversos eus. Segundo ele, é preciso sempre ter em mente que “Alberto Caeiro, Reis, Campos, mas igualmente Fernando Pessoa - ele mesmo - são só (e que outra coisa poderiam ser?) os seus poemas” (Lourenço, 2000: 29). Simples assim. Seus heterônimos são apenas recursos literários que o poeta utiliza para tentar transmitir algum conteúdo.
Vejamos como isso se dá em Alberto Caeiro.

Primeiro poema de “Poemas Inconjuntos”, de Alberto Caeiro (Publicado em ATHENA, número 04, janeiro de 1925)

Alberto Caeiro (1889-1915), de acordo com a biografia criada por Pessoa, teria nascido em Lisboa, mas morado toda sua vida no campo. Não teve profissão definida e sua educação foi muito pouca. Como afirma Massaud Moisés, existe nítida coerência entre a biografia inventada para o poeta e os poemas que levam sua assinatura: “para tão curta vida, quase toda ela transcorrida no campo, para tal biótipo e para um dia-a-dia sem problemas e cuidados, uma poesia logo tornada razão de tudo” (MOISSÉS, 1987:26). Ou seja, para um indivíduo que viveu muito pouco, não tendo tempo para sentir os dissabores da vida, e que passou todo esse pouco tempo no campo, sem trabalhar e sem maiores preocupações, faz sentido que sua poesia englobe todos os aspectos de sua existência, que funcione como instrumento ou lente por onde ele observa e traduz o mundo. Também faz sentido que, tal qual acontece com os seres na natureza, ele use dos sentidos, negando o pensamento racionalista e “humano” que de tudo desconfia, para chegar à verdade.
Essa postura está expressa logo nos primeiros versos do poema analisado que, sem subterfúgios estilísticos complexos, começa a demonstrar de que maneira o poeta enxerga a realidade.

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.


Para enxergar de fato as árvores, o rio, as flores, os campos, as coisas do mundo, não é suficiente para o poeta apenas utilizar os sentido da visão. Para olhar essas coisas como elas são é preciso um outro fator. Mas que fator é esse? Ele logo nos esclarece nos versos seguintes.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.


Como se pode perceber por estes versos, para o poeta coisas não são idéias. Coisas são coisas. Uma demonstração filosófica da realidade, por meio de idéias, é sempre insuficiente para demonstrar a realidade.

Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;


Com a vida baseada em pressupostos filosóficos, não naturais, cada um de nós é, para o poeta, como um mundo - uma cave, um lugar escuro debaixo do chão, um lugar isolado. Não há a convivência básica e universal de apenas se estar na natureza.
Com esses versos iniciais já é possível perceber que o poema é também uma crítica a maneira ocidental de encarar o mundo, sempre procurando explicações racionais para tudo, sempre procurando encaixar as coisas em teorias mais gerais. É, no fundo, uma crítica á maneira aristotélica e/ou positivista de ver o mundo.

E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Esses versos finais, que remetem ou que são quase uma repetição dos versos cinco e seis, de novo se referem à idéia principal do texto que, em termos simples, pode ser traduzida pela equação abaixo.
estrutura filosófica ocidental (e qualquer conjunto de idéias que pretenda entender a realidade) = SONHO (apenas)
Afirmar, como faz o poeta, que o mundo só precisa ser sentido - no caso do poema, apenas visto - e não intelectualizado, pensado, é, em si, uma maneira de intelectualizar o assunto, “filosofar”. De acordo com Moissés, o “poeta quer abolir o pensamento, pois o pensamento significa atentar contra a simplicidade das coisas, contra a Natureza, que existe para ser vista e não para ser pensada. Mas pensa para o dizer, é como o pensamento, é com o pensamento, que manifesta seu desejo. Aí o seu processo, o seu drama”(MOISSÉS, 1987:28).
Essa aparente contradição entre o desejo de não pensar para apreender o mundo e a situação real de pensar para fazê-lo é um primeiro distanciamento entre o poeta e sua obra. Esse distanciamento, claro, é o que torna possível a obra ser feita mas, mesmo assim, não deixa de ser uma contradição patente ao leitor atento.
Só que Caeiro, o pretenso autor dos versos, não existe “na natureza”. Ele é uma criação intelectual de Pessoa. Temos, então, mais um nível de abstração ou de distanciamento entre o poeta, que é Pessoa e não Caeiro, e sua obra, o poema em si.
Por fim, se se quer chegar a esse extremo, Pessoa tem que utilizar uma outra criação intelectual, anatural, para criar Caeiro (que É esse e outros poemas com seu nome): a linguagem, a língua portuguesa. Temos, então, um terceiro distanciamento intelectual entre Pessoa e o poema.

Uma conclusão

Deixando explícitos os níveis de distanciamento utilizados por Pessoa para produzir seu poema por meio de Caeiro, mais fácil fica entender o quanto o autor depende de suas personas - meras ferramentas - para manifestar todos os pontos de vista filosóficos, estéticos, artísticos que entupiam sua cabeça. Ao mesmo tempo, esse tipo de análise torna ainda mais evidente algo que, afinal, é óbvio: todos os heterônimos são Pessoa.
Isso, por sua vez, levanta outra questão. Na medida que o poeta defendia com suas personas filosofias e modos de encarar a vida tão distintos, até que ponto Pessoa era um sofista, atirando para todos os lados em nome da arte, não importando se se chegava a alguma espécie de verdade ou “apenas” a uma poesia. Dessas que ficam para a posteridade por mais uns mil anos.

Bibliografia
Moisés, Massaud, “Introdução”. In: O guardador de rebanhos e outros poemas. Brasil: Círculo do Livro, 1987.
Lourenço, Eduardo. “Fernando Pessoa Revisitado”. Lisboa: Gradiva, 2000.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Cortázar e o estranho no sofá

Hoje em dia já se tornou lugar comum afirmar que, graças às novas tecnologias, valores e culturas estrangeiras chegam ao nosso país e às nossas casas cada vez com mais facilidade. Admitindo isso como fato, cabe agora dar um outro passo e tentar descobrir o que fazer com esse OUTRO estranho a nós que tão sem cerimônia já se esparrama no sofá da sala e belisca uns salgadinhos, prometendo influenciar com seu comportamento nossos filhos.
“Axolotl”, conto de J. Cortázar, é uma boa forma de iniciar a discussão. A tensão inerente à relação do EU/OUTRO é um dos assuntos tratados no texto.

Em primeira pessoa, o texto começa com a estranha afirmação de que o narrador, que antes pensava muito em axolotls (espécie de lagarto anfíbio), é agora, na hora da enunciação, o próprio animal. O conto será a história de como o enunciador conheceu os animais, ficou fascinado por eles e, mais ou menos, se transformou em um deles.
Em um zoológico de Paris, o narrador um dia encontra os estranhos animais dentro de um aquário. Sua fascinação por eles é imediata. “Me quedé una hora mirándolos y salí, incapaz de otra cosa”. No dia seguinte, e nos outros, às vezes de manhã e de tarde, conduzido por sua obsessão, o narrador visita os animais confinados no aquário.
O que o levava até o aquário? Nem o narrador sabe ao certo. O que afirma é que desde o primeiro encontro sentia um vínculo com axolotls, “algo infinitamente perdido e distante seguía sin embargo uniéndonos”. Um outro apelo eram os olhos dos animais, de um ouro transparente, “carentes de toda vida pero mirando”. Sobre os olhos ainda, o narrador diz que “me decían de la presencia de uma vida diferente, de outra manera de mirar”. Além disso, o narrador buscava ver nos diminutos pontos áureos, “esa entrada al mundo infinitamente lento e remoto de las criaturas rosadas”.
Tudo isso somado, mais o fato do narrador fazer verdadeira peregrinação diária ao aquário, já indica, quase que claramente, uma das imagens que o autor pretende levar ao leitor: o que está sendo narrado é o fiel que procura em sua igreja, a sala dos aquários, diante de seu objeto sagrado, não uma cruz mas um bando de animais confinados por quatro paredes de vidro, transcender desse nosso mundo material. Os olhos áureos sem vida e, ao mesmo tempo e incrivelmente, tão transcendentais e potencialmente portadores de uma “vida diferente”, são a maior prova dessa intenção do autor e, claro, um dos mistérios do conto.
Fortalecendo essa interpretação, outra passagem é significativa: “Los ojos de oro seguían ardiendo con su dulce, terrible luz; seguían mirándome desde una profundidad insondable que me daba vértigo”.
Como um fiel diante da verdade suprema e, conseqüentemente, da autoridade suprema de Deus, o narrador sente fascinação e temor dos axolotl e seus olhos.
Não apenas isso. Como que escrevendo a bíblia de uma nova religião, suas histórias e mitos, e apoiando-se unicamente nos inexpressivos e imóveis animais (o que, aliás, não é tão diferente de se apoiar em um homem morto em uma cruz), o narrador já imagina toda uma fantasmagoria em torno dos axolotl. Que eles estavam conscientes, escravos de seus corpos, incapazes de se comunicar e que pediam ao homem diante do aquário, o narrador, que os salvassem.
Claro, há aqui um processo de fetichização, ou ao menos sua ilustração pela literatura. Pode-se dizer que o homem transfere algo que está nele, sua força, sua capacidade de fazer as coisas e mudar sua vida e sua sociedade, para um objeto inanimado (no caso, um animal, mas que, coincidentemente, é quase inanimado, já que se mexe muito pouco).
Tudo muito simples, certo? O conto é uma crítica à fetichização que o homem está condenado (está?) a praticar sempre, dando a outros o poder que é dele. Na verdade não, já que a história não acaba por aqui.
Um dia, quando visitava os axolotl na sala dos aquários, algo de incrível ocorreu. “Sin transición, sin sorpresa, vi mi cara contra el vidrio, em vez del axolotil vi mi cara contra el vidrio, la vi fuera del acuario, la vi del otro lado del vidrio”. Poder-se-ia pensar que o humano se transformou no sagrado. Mas não, não há uma transformação. O que acontece no conto é que a consciência do homem passa a ocupar também o axolotl, sem que, no entanto, o homem perca sua consciência. Em poucas palavras, o outro que era olhado assume a consciência de quem olhava, a sua personalidade por assim dizer, e passa a ser também quem olha. Além disso, durante esse processo, a coisa olhada, que era sagrada apenas para quem a olhava e a exaltava como a porta para uma espécie de transcendência, adquire independência, não mais precisando daquela pessoa que a criou como sagrada para existir. Continuando na analogia exposta acima, pode-se dizer que o sagrado criado, a religião criada, depois de um tempo, passa a ter vida própria e não precisa mais de quem a criou para continuar a existir: ela é agora algo que existe socialmente.
Ao mesmo tempo, o narrador, agora um axolotl que olha ao seu antigo EU de dentro do aquário, faz a terrível constatação de que tudo que ele projetava no animal, que este seria o portador de uma verdade transcendente e melhor, eram fantasias e que, mesmo sendo agora um axolotl, seguia pensando como antes. Ou seja, sua vida como axolotl de agora era tão sagrada quanto a vida que ele levava como homem. Mais ainda, olhando para seu EU fora do aquário, o narrador percebe, estarrecido, que “ninguna comprensión era posible”, que um homem só pode ter o pensamento de um homem e um axolotl só pode ter o pensamento de um axolotl. Fora essa algo deprimente constatação, tudo o que sobra a quem olha os animais dentro do aquário é teorizar sobre eles, impondo-lhes características que gostaríamos que tivessem e não as que de fato têm. Quando o autor confere ao axolotl a “personalidade” do homem que olhava o aquário, ele está dizendo exatamente isso: conferimos às coisas, aos nossos fetiches, apenas o que temos, nunca mais do que somos, nunca um ilusório sagrado transcendental.
Toda essa mágica de realismo fantástico tem, claro, intenções outras que não apenas confundir o leitor. São, em primeiro lugar, como já foi dito acima, uma crítica ao fetichismo, à religião e aos crentes em geral.
Pode-se aqui usar Freud e dizer que Cortazar e o psicanalista compartilham da crítica da fase religiosa do ser humano, quando a onipotência é transferida a uma figura divina o que, como se viu no conto, é necessariamente um processo de auto-engano. Por outro lado, não é possível dizer que, como Freud, Cortazar confia no desmascaramento que o iluminismo e a ciência podem causar nos dogmas da religião (inclusive, no caso, a transcendência que o axolotl seria o portador). Na verdade, ao dotar seu fetiche, o axolotl, de independência e consciência, justamente a consciência transferida do fiel, o autor está dizendo que a ciência não é o bastante, não é o instrumento adequado para proporcionar a destruição do mito. Este, mesmo sem a atenção do homem do lado de fora do vidro, sobrevive, é um fato da vida, ou ao menos, como já foi dito, uma construção social. A ciência, então, aparece como outro axolotl, outro depositário de esperanças, de uma pretensa verdade inegável, por parte do homem, que se mostra ineficaz.
Como diz Mariátegui sobre esse assunto: “La experiência racionalista há tenido esta paradójica eficácia de conducir a la humanidad a la desconsolada convicción de que la Razón no puede darle ningún camino. El racionalismo no ha servido sino para desacreditar a la razón.”(Mariátegui, 1974: 28).
Ao final do conto, o homem, que antes visitava o aquário diariamente, aparece cada vez menos. Claro: como uma religião que perdeu seu encanto, sua magia, o visitante enxerga cada vez menos de si nos axolotl que, apesar de terem parte da personalidade do visitante, continuam a ter suas vidas de axolotl. Nas palavras do narrador, agora animal de aquário: “las puentes están cortados entre él y yo, porque lo que era su obsesión es ahora um axolotl ajeno a su vida de hombre”.
Como se vê, o que ocorre no conto é uma série de desilusões. Aparentemente nada se salva: o sagrado não é sagrado e a ciência e o materialismo também não respondem com uma verdade desejada já que o homem não consegue olhar além e conhecer, de fato, o que está dentro do aquário, os axolotl. Aliás, uma separação entre o objeto e o sujeito, condição necessária para a análise positivista de qualquer coisa, não se processa no conto: o observador se torna o objeto observado, em um processo que não tem nada da imparcialidade científica.
Mas dito tudo isso, o que sobra ao ser humano?
Aparentemente, lendo Cortázar, literatura. É ela que, usando desse desastre de transformação de um homem, ou ao menos de uma parte de si, em um animal, denuncia as máscaras e os desmascaramentos, revelando a ilusão de uns e outros e, teoricamente, tornando o homem mais capacitado para a vida.

Mas e aquele OUTRO diferente, estrangeiro, que estava no sofá de nossa casa? O que fazer com ele?
Ora, para um país subdesenvolvido se incluir na modernidade, é necessário que ele encare esse outro, o que é diferente, como o homem faz com o axolotl, e decida o que fazer. Pode-se, claro, ficar fascinado por esse outro a ponto de querer penetrar no enigma representado por ele. Uma outra opção é rejeitar completamente o outro, negando-lhe qualquer tipo de influência em nossa vida. Seria o mesmo que passar direto pelo aquário do axolotl, reconhecendo nele apenas um animal como outros. Como já se disse, há dúvidas de que esse procedimento dê certo em nosso mundo globalizado: as influências chegam hoje em dia cada vez de mais fontes e de forma praticamente inevitável.
Usando a imagem do conto, pode-se dizer que os escritores brasileiros estão fora do aquário, suas preocupações e problemas são necessariamente de alguém de fora do aquário (afinal são brasileiros e não de outra nação). Por mais que queiram entender, imitar o grau de qualidade e transcendência dos grandes autores estrangeiros, só o farão quando não forem mais brasileiros, quando se tornarem os axolotl. Fora isso, eles só podem especular o que são esses olhos de ouro que os fascinam tanto. Mas há problemas em adotar tão sem ressalvas a forma dos axolotl: se o que se queria era representar o brasileiro mas com a qualidade, a técnica, estrangeira, isso já não é mais possível na forma do animal. Isso porque as preocupações de um axolotl, de um estrangeiro, são outras, diferentes, muitas vezes, das de um brasileiro. O pêndulo aqui foi demais para o exterior e o autor perde suas referências, não sabendo mais a quem se dirigir e como. Uma passagem do conto é significativa a transmite bem essa idéia: “El horror vénia - lo supe el mismo momento – de creer-me prisionero em um corpo de axolotl, transmigrado a él com mi pensamiento de honbre, enterrado vivo em um axolotl, condenado a moverme lucidamente entre criaturas insensibles”. Esse é o horror do homem que, sem saber o que é, tenta ser outra coisa. Transforma-se então nessa outra coisa, mas com a consciência ainda do que era. Não sendo completamente nem uma coisa nem outra, não tendo um passado e referências, não pode se expressar, ficando limitado ao resplendor dourado dos olhos do axolotl.
Há ainda uma terceira opção entre esses extremos. É possível também, aos países subdesenvolvidos, adotar graus de consciência do atraso, incorporando esse atraso (econômico, cultural, social) às obras literárias, mas não de forma positiva, triunfalista, mas de forma crítica. Transformar a realidade nossa em um campo do universal, utilizar as técnicas estrangeiras para dizer algo de nós.
Mas isso não está posto no conto. Ou melhor, o conto enquanto obra literária é essa terceira opção, mas essa terceira opção não é abordada diretamente na narrativa.

Referências Bibliográficas

CANDIDO, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento” In: A Educação pela Noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
CORTÁZAR, Júlio. “Axolotl”. In: Cuentos completos. Madrid, Alfaguara, 1994.
Freud, Sigmund. “O estranho”. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Edição Standard). Vol. XVII. Rio de Janeiro, Imago Editora.
Mariátegui, José Carlos. “El hombre y el mito”. In: Ensayos Escogidos. Lima: Editora Universo, 1974, pp. 28-34.
Marx, Karl e Engels, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo, Nova Stella, 1990.LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru: EDUSC, 2002.

Lost Girls – Veja Alice através do espelho



Em Desvendando os Quadrinhos, Scott McCloud aponta para o perigo de que imagens e palavras, nas HQs, não se complementem, criando um conjunto artístico inferior ao seu potencial original (páginas 48 e 49, acima). Imagens e palavras, a linguagem básica das HQs, se afastariam devido, primeiro, às suas características essenciais e opostas: imagens são informações recebidas, as pessoas não precisam de educação formal para entender uma ilustração; a palavra, por outro lado, é informação que deve ser percebida, coisa que só acontece depois que os símbolos da linguagem são decodificados. Existiria, então, uma dificuldade inerente, estrutural, de unir da melhor forma possível esses dois lados da moeda. Também a necessidade cada vez maior de sofisticação e, acrescentaria, produtividade industrial nos quadrinhos levaria desenhista e roteirista a se especializar em suas áreas, esquecendo-se, muitas vezes, de que apenas a união harmoniosa de seus trabalhos conta a história da melhor forma possível.
Alan Moore não costuma cometer esse erro e não o cometeu tampouco em Lost Girls. Polêmica, descrita como “ficção erótica” na edição que ora a Devir publica, a obra comprova mais uma vez o domínio que o inglês barbudo alcançou sobre os elementos de sua arte.
Os três livros que compõe a HQ são divididos em pequenos capítulos, cada qual com inventivas e diversificadas soluções narrativas. O capítulo um, O espelho, é um bom exemplo. Toda a ação - a apresentação de uma das três personagens principais, Alice, e sua mudança para um hotel austríaco - é mostrada através do reflexo em um espelho. As oito páginas são todas divididas em seis quadrinhos e os personagens e paisagens aparecem somente na medida em que se posicionam em frente ao espelho.
Mas o que queria Moore com esse recurso? Muitas coisas, acho. Há, claro, uma referência a já citada personagem tratada no capítulo, Alice, e às obras das quais Moore a tirou: Alice no pais das maravilhas e Alice através do espelho. O espelho, de acordo com o narrado nos livros, seria a porta para um outro mundo, onde Alice - em Lost Girls já uma experiente senhora de meia idade - não estaria submetida às regras lógicas e sociais tradicionais. Com o desenrolar dos capítulos da HQ, será possível perceber que Moore transformou o episódio de atravessar o espelho e penetrar nesse estranho mundo, de uma aventura fantástica infantil, em uma turbulenta e algo louca iniciação sexual à que a jovem Alice foi submetida. As conseqüências dessa iniciação da menina Alice podem ser percebidas na Alice madura já nesse primeiro capítulo.
Nas páginas um (acima) e dois temos o espelho refletindo um mesmo ambiente, o quarto da protagonista. A beirada de uma cama pode ser vista e um diálogo se desenrola entre Alice e o que parece ser uma garotinha, aparentemente sua amante. Parece uma garotinha, pois ela nunca é mostrada de verdade. Podemos inferir que ela está lá pelos balões de diálogo - dois grupos, indicando duas pessoas - assim como pelo conteúdo da conversa. Essa impressão, de que Alice estaria acompanhada, é reforçada na página três, quando, no dia seguinte, o espelho reflete a imagem de duas empregadas arrumando o mesmo quarto. Uma delas confessa que ouviu Lady Fairchild (Alice) falar sobre os “peitinhos” da menina, muito embora não tenha ouvido a própria menina. Mas tudo fica mais confuso, ou mais claro, no final do capítulo. Temos agora uma cena que repete a das primeiras páginas: o espelho reflete a imagem da beira de uma cama onde é possível perceber Alice, que se masturba. Ao final, nos quadros cinco e seis da página sete, ela pergunta, olhando diretamente para o espelho “Como me saí?”, ao que ouve como resposta “Bem, devo dizer que você parecia uma mundana”. De novo, o espelho não reflete ninguém além de Alice no quarto, muito menos uma menina. Mas, então, quem está respondendo? Quem é a interlocutora a quem Alice chama de “querida criança”? Uma possível resposta é que ninguém, ou melhor, a própria Alice, ou sua imaginação. Quando menina, ela entrou no espelho, passou pela iniciação já citada, e o que saiu foi uma versão adulta de si mesma, deixando trancada do lado de lá do espelho a “querida criança”.
Ela quer, como alguns diálogos ao longo do capítulo deixam transparecer, recuperar essa sua versão, principalmente sua juventude - coisa que se reflete até no fato dela querer fazer sexo com essa versão infantil de si, possuir essa versão, se transformar nela -, mas é tarde: a vida só vai num sentido. Nas palavras de Alice (página final do capítulo, ao lado), sobre sua incapacidade de atravessar o espelho e recuperar sua versão juvenil: “A barreira não se dissipa mais, não é? Como uma névoa prateada. Ela não se dissolve”. Mas não será por falta de tentativa que ela não recuperará sua juventude. Mesmo já uma senhora de meia idade, mesmo não podendo recuperar sua juventude de fato, tem uma vida muito diferente das outras matronas: usa drogas, escreve literatura pornográfica e mantém casos com meninas. Sobre a literatura que produz, aliás, é interessante notar que, rejeitando a acepção realista da atividade, um espelho, ela prefere aquela de Platão onde, em suas palavras, “o ideal é a questão; o mundo além do espelho da ficção; esse é mundo real”. Não o reflexo em si, portanto, mas o que há além dele, além do real: seu significado profundo. Aqui, de novo, é possível notar o traço principal da personagem, qual seja, a busca do prazer, seja ele de que forma for, como fuga da realidade, mesmo que ela não veja isso como fuga, mas como a busca da realidade verdadeira, e não esse vale de sombras em que vivemos.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O início e o final dos tempos de acordo com Machado de Assis - uma análise comparativa em três tempos de dois contos do autor

O realismo e o fantástico

De um movimento literário de nome realismo não é despropositado que o leitor ou estudioso espere uma representação do mundo real. Considerando-se que todo escritor trabalha sua ferramenta, a linguagem, sempre em função de uma tensão entre representação e invenção (LAGES, 2001:128), o realista seria aquele que tenderia mais à representação. Como se sabe, entretanto, o problema não pode ser posto em termos tão simples. Há alguns autores e obras que, embora representem coisas inimagináveis, só críveis dentro do campo do fantástico, não são menos representativos da sociedade, da relação entre as pessoas, dos indivíduos e seus maneirismos. A lógica, nesses casos, é diferente: mais do que o configurado diretamente pela linguagem ao leitor, o realismo está nas idéias exemplificadas pelo fantástico, pela estrutura do texto, pela forma de narrar, ou em outros aspectos.
Em seu estudo sobre Dostoievski, Bakhtin se refere a obras desse tipo na Antiguidade Clássica como dentro do campo do sério-cômico. Nesse tipo de literatura, a realidade, mesmo a realidade do dia-a-dia, seria sempre o ponto de partida. Não importando se baseados em lendas ou mitos, como nos contos analisados abaixo, esses textos oferecem uma visão crítica ou cínico-desmascaradora, como afirma Bakhtin, da realidade. Como resultado, temos uma “imagem quase liberta da lenda, uma imagem baseada na experiência e na fantasia livre” (Bakhtin: 108). Ou seja, os autores do sério-cômico usam as lendas, mitos e todas as significações simbólicas a eles associados para se referir a algo da realidade de maneira crítica.
Machado de Assis fez obras desse tipo. “Viver!” e “Adão e Eva”, de Várias Histórias, apesar de serem incríveis no que representam, apresentam aquela característica que transpassa todos os textos do autor, aquele relativismo moral, aquela falta de valores absolutos, aquela descrença nos homens que é o resultado, como bem colocou Bosi, do fato universal e atemporal de que os homens “se defendem” (Bosi, 1982: 88). Eles se defendem, eles precisam, para viver, ou ao menos para viver confortavelmente, e é disso, exatamente, que resultam todas suas falhas morais e o conseqüente desencanto de Machado por nossa espécie e sociedade.
Essa moral fluída e realista, já que representativa, é o que está presente nos contos citados e é o que pretendo demonstrar abaixo.

O início

O conto “Adão e Eva” se passa num engenho na Bahia, “pelos anos de mil setecentos e tantos”. Durante uma festa, um homem demonstra curiosidade sobre qual tipo de doce está sendo servido. Isso é motivo, então, para uma discussão sobre a curiosidade, se os homens ou as mulheres seriam mais curiosos e de quem seria a culpa pela perda do paraíso.
Todos acabam opinando sobre a questão, menos frei Bento, que “toca viola”, e o juiz de fora, o Sr. Veloso. Esse afirma que a questão não pode ser posta nesses termos já que “as cousas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que contado no primeiro livro”, o Velho Testamento.
O que se segue, então, é o Sr. Veloso recontando uma parte da Bíblia. Antes, porém, alguns detalhes do texto são um indício do tipo de narrativa que se dará. Em primeiro lugar, é preciso notar que, enquanto em todos os outros presentes a revelação do juiz Veloso de que a Bíblia estava errada causou espanto, no frei - justamente no frei, homem da igreja e que, teoricamente, deveria ficar mais indignado com isso -, que o conhecia, um sorriso foi o resultado. Esse sorriso é significativo: indica aprovação, certa cumplicidade, como se ele soubesse o teor do que seria dito e aquela fosse a ocasião ideal para dizer. Isso, aliás, não é impossível já que, como foi dito, ele conhecia o juiz. Do Sr. Veloso também se afirma que é “amigo da pulha”, desde que “curial e delicada”, assim como “jovial”, “inventivo” e, importante, “um dos mais piedosos sujeitos da cidade”. Voltarei a essas características.
Sobre a narrativa que se seguirá, o frei afirma que terá “boa significação”. Machado, por meio de seus personagens, de uma maneira direta que não lhe é peculiar, parece estar nos avisando do que se trata: é uma história com significações ocultas, uma parábola de algo, deve-se lê-la nas entrelinhas. O fato do Sr. Veloso “conhecer outros livros...” além da Bíblia, já nos mostra que sua narrativa terá uma significação diversa e mais ampla do que a do livro sagrado.
Subvertendo o texto bíblico, o juiz começa logo esclarecendo que quem criou o mundo foi o Diabo, não Deus, que apenas “atenuava a obra”. Essa atenuação veio logo: se o capeta criava as trevas, Deus criava a Luz, se o Tinhoso vinha com furacões, o Senhor aparecia com “brisas da tarde”, de maneira que se pode dizer que a criação foi um trabalho de quatro mãos, sendo que o Diabo se ocupou um pouco mais.
Quatro mãos em tudo, até no que foi criado no sexto dia: o homem e a mulher. Ambos, claro, criações do Demo, Deus fornecendo “apenas” a alma.
Nesse ponto é possível fazer uma aproximação entre o mundo demoníaco criado pelo juiz e a maneira de enxergar a realidade, e a representar textualmente, de Machado de Assis. Seus personagens em quase toda sua obra, pelo menos os mais importantes, respondem às situações criadas sempre em função de uma complexa dialética entre o bem e o mal, dialética esta que descobre seu sentido orientador pela necessidade. E, se escolhem invariavelmente o caminho menos nobre, das máscaras e da enganação, quem pode culpá-los? É essa a única resposta sã em um mundo demoníaco, para usar a imagem do conto, um mundo que teima em não fazer sentido. Sobre o resultado dessas escolhas, à que freqüentemente os personagens de Machado são submetidos, Alfredo Bosi afirma:
“A necessidade de proteger-se e de vencer na vida - mola universal - só é satisfeita pela união ostensiva do sujeito com a Aparência dominante. E, por acaso, será lícito culpar esse pobre e vulnerável sujeito porque subiu com a maré do seu tempo para não afogar-se na pobreza, na obscuridade e na humilhação?” (BOSI, 1982: 86)
Mas o conto não é apenas isso. Depois que receberam suas almas, o homem e a mulher mudaram totalmente. Ele, que antes tinha ímpetos de espancar a companheira, e ela, que “cogitava de armar um laço a Adão”, agora, com suas almas, se entretinham contemplando-se e à natureza.
Nesse ponto a narrativa se aproxima da história tradicionalmente contada na Bíblia. Adão e Eva, no paraíso, foram tentados pela serpente que, a serviço do Diabo, oferece a Eva o fruto da “ciência do bem e do mal”. No entanto, e esse desdobramento é o que há de genial no conto, nem ela nem seu companheiro aceitam a fruta sob a alegação de que nada, “nem a ciência, nem o poder, nenhuma ilusão da Terra”, valiam a perda do paraíso. A história do juiz termina com Deus recompensando a postura do casal trazendo-os para perto de si, no céu.
A narrativa do conto dentro do conto termina com reticências, o que faz sentido: reticências, interrogações, surpresa, é o que fica na cabeça do leitor do conto e do ouvinte do juiz ao final da “narração enigmática” e “sem sentindo aparente”.
Essa narração, entretanto, não é tão sem sentido assim ao se pensar de qual cabeça se origina a narração - dentro do conto -, para quem foi dirigida e qual a opinião de Machado sobre a humanidade.
O narrador, o Sr. Veloso, era um juiz. Homem acostumado a ver as iniqüidades da vida e as falsidades do homem. Não seria difícil a tal personagem, que ainda era “dos mais piedosos da cidade”, reconhecer que o que existe por aqui, mais do que um homem feito à imagem de Deus mas condenado por ter comido uma fruta, é uma obra do Demo, algo que “rasteja, babuja e morde”, para usar uma expressão do divino se referindo ao que sobra na Terra quando o primeiro casal vai para o céu.
Já que, além de sério para as coisas sérias, ele era também “jovial”, “amigo da pulha” e “inventivo”, o juiz consegue “sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida”, como afirma Cândido se referindo ao estilo de Machado (CÂNDIDO, 1970: 23). A aproximação dos dois, personagem e autor, não é despropositada. Como afirma Lúcia Miguel Pereira, uma das classes de indivíduos criadas por Machado que escapam à mediocridade geral é a dos que “consideram a vida como um espetáculo e por isso sabem rir dos cálculos dos homens e das rasteiras do destino” (PEREIRA, 1973: 95). Como Machado em seus melhores textos, ou como Brás Cubas e o Conselheiro Aires, o juiz, pessoa que conhece “outros livros”, usa do humor e de idéias aparentemente descabidas para discutir valores universais. No caso, para resumir em poucas palavras um tema complexo, o desacerto do mundo. Como o público de Machado em sua época, o público do juiz não o entende completamente. Tacham-no de galhofeiro, de contador de causos interessantes mas que acabariam em seu significado e interesse quando acaba sua narração. Eles não o entendem.
E como poderiam entender, afinal? É à D. Leonor, a fazendeira, à elite e seus agregados, a todas as elites em todas as partes, que a crítica da narração se dirige, se o problema for abordado de maneira mais “social” e não tão filosófico e universal. Ora, um mundo habitado por criaturas do Demo, onde Deus dá apenas uns “retoques”, parece ser exatamente o mundo de “mil setecentos e tantos”, assim como o mundo do final do século XIX e começo do XX de Machado (isso sem falar no mundo que se tem hoje, mas isso é outra discussão), onde uma pequena elite não trabalha e vive às custas do trabalho escravo ou pessimamente remunerado. Essa leitura mais diretamente “social” e crítica, que é confirmada por Roberto Schwarz em vários romances do escritor carioca, é uma das facetas desse maravilhoso conto.
A “Aparência dominante” citada acima de Bosi, a que os homens deveriam aderir pela ação da sociedade, atua também, é bem verdade, sobre o juiz: ele não fala explicitamente o que pensa daquelas pessoas e da sociedade onde vive. Como Machado, de novo, o personagem se vale de uma narrativa enigmática a qual apenas ele e talvez o frei compreendam o sentido último. Sua máscara é a fusão da narrativa obscura e da incompetência para ler nas entrelinhas de seu público. Ao mesmo tempo em que aponta a ignorância reinante ele se vale dela para passar incólume em sua crítica.
Com essa última observação, fica claro que o que Machado fez, pelo menos de um ponto de vista, digamos, social, foi usar sua história “fantástica” dentro da “real” para ilustrar um dos seus temas prediletos: a exploração do homem pelo homem, o desacerto do mundo. Para conferir ao texto esse tipo de sentido não bastaria contar ao leitor, a nós, apenas a narrativa modificada de Adão e Eva. Machado precisou mostrar a reação da fazendeira e seus convidados, a cumplicidade do frei e do juiz. Precisou também caracterizar o juiz espiritualmente mais do que a todos, já que é de sua “credibilidade” que depende a alegoria: o fato de mais de um parágrafo ter sido usado para tal fim é significativo. Esses elementos narrativos, só possíveis dentro dessa forma - uma história dentro da outra -, funcionam como uma evidência que o Demo ainda nos controla a todos. Os extremos do conto, seu início e seu fim, são essenciais para o tipo de entendimento que o autor queria que seu conto tivesse. Assim, o que o texto narra não é um novo início dos tempos, mas um “os tempos”: a natureza humana agindo da mesma forma sempre. E nisso, exatamente, é que está seu realismo.
Como se vê, a motivação do juiz para narrar sua versão de Adão e Eva parece ser a mesma motivação que Bakhtin encontra para a composição dos textos do gênero da sátira menipéia: “criar situações extraordinárias para provocar e experimentar uma idéia filosófica” (Bakhtin:114). O interessante nesse conto é que, enquanto o juiz com seu relato parece estar simplesmente declamando essa sátira menipéia ao seu público - mesmo que este não o entenda -, Machado com certeza está em um nível de complexidade acima quando encena sua história dentro da história. Sua discussão filosófica, na verdade, aumenta em complexidade com esse recurso formal: se com a história bíblica sua crítica pode ser interpretada universalmente, quando ela é introduzida, no texto do conto, em um ambiente tipicamente brasileiro, o alvo do que está sendo dito se torna também regional.

O fim

O conto “Viver!”, no mesmo livro, tem estrutura formal diferente. Depois de uma pequena introdução que situa a ação no final dos tempos, o que se desenrola é um longo diálogo entre dois personagens, ao estilo do teatro. Um é Ahasverus, o judeu errante, personagem da mitologia cristã que foi condenado a errar até o final dos tempos por Deus pelo crime de não ter ajudado e, na verdade, maltratado Jesus durante seu martírio. O outro personagem é Prometeu, da mitologia clássica grega, que foi condenado por Júpiter a ser eternamente estripado pelo pecado de ter feito “de lodo e água” os primeiros homens e de ter trazido a eles, do Olimpo, o fogo.
O diálogo entre os personagens segue uma direção que é, basicamente, a seguinte. Ahasverus, feliz por ver terminar sua peregrinação, seu profundo fastio da existência, conta sua história para Prometeu. A passagem eterna dos anos, a monotonia das alternativas que se apresentavam para a humanidade, fizeram com que o personagem não mais distinguisse as “flores das urzes”. Tudo se funde, então, num único e trágico destino da humanidade, esse tédio da condição humana, onde enganação se sobrepõe à enganação e o “espetáculo da alegria” é a mesma coisa que os “discursos de um doudo”. Ao contrário do juiz de “Adão e Eva” que, como Machado - ao menos em seus últimos romances e contos -, entende e acha graça do espetáculo entediante de “cálculos e choques” (Pereira, 1973: 78), Ahasverus está em conflito com o tempo aniquilante e exigente e a humanidade que a ele se submete cometendo sempre os mesmos erros, e não vê onde, afinal, está a piada.
Não encontra a piada mas pensa ter encontrado o piadista na figura de Prometeu, já que este confessa ter começado toda essa horrível confusão quando deu origem aos homens e lhes deu o poder, o fogo. A comparação, então, com o conto anterior é inevitável: Prometeu, “artífice do inferno” como a ele se refere Ahasverus, é uma espécie de Demo que, criando a humanidade e lhe conferindo poder, é a “origem dos males”, origem do eterno tédio e desesperança dos habitantes do planeta. Se o pecado do judeu errante foi, ao querer “realçar seu zelo” frente aos outros, agir de maneira cruel para com Jesus durante seu martírio, mais infame é o criador de todo o mal, da vida e da sociedade, da Natureza enfim. Essa natureza das coisas é que é, para Machado, a causa principal dos males do mundo. Como aponta Bosi, comentando o sonho de Cubas em “Memórias Póstumas”, ela é a causadora das máscaras entre os homens:
“A Natureza, fonte primeira de toda a história dos homens, aparece como um ser frio, egoísta, surdo às angústias daqueles que ela mesma gerou. Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A máscara é, portanto, uma defesa imprescindível, que vem de longe, de muito longe, como a pele do urso e a cabana de paus arrumadas pelo selvagem para se proteger do sol, do vento, da chuva” (BOSI, 1982: 87).
Vem de longe, de fato. Poderia se dizer, dentro do espírito de comparação do estudo, que vem do conto anterior, do início dos tempos, e que é uma constante, a única constante em um universo cuja regra geral é a transformação. Esse egoísmo passa por todos os séculos e chega ao final dos tempos incólume: não é essa a motivação dos dois personagens do conto, sobreviver o melhor possível? Como se verá, é a esse egoísmo, essa lei generalizada, que o título do conto faz referência.
Mas o diálogo continua. Irado com a descoberta, Ahasverus prende novamente Prometeu nas correntes. A situação se inverte quando, prometendo ao judeu um reino novo, uma nova humanidade, melhor que essa nossa, Prometeu o convence a o liberar dos grilhões. Essa humanidade, no entanto, não será tão nova assim. Terá na figura de Ahasverus, o rei dessa nova criação, um elo com a anterior. Isso já é um indício de onde Machado nos quer levar: Prometeu, tencionando criar uma nova humanidade - como o Demo criou a nossa -, já começa metendo os pés pelas mãos, fundando já essa nova criação em promessas de poder fúteis que lembram, expandindo a idéia, o que vinha junto à maçã oferecida à Eva: poder, rivalidade, competição.
Ahasverus, que estava a ponto de aceitar a morte - estava mesmo? - entrega os pontos e abraça mais uma ilusão - a nova humanidade, a possibilidade de ser rei - mesmo tendo, ao longo de sua vida eterna, observado os homens cometerem sempre esse mesmo erro, sempre achando que nesse mundo as escolhas existem e que o amanhã será melhor e diferente e não apenas variações do mesmo tema.
Como se vê, também os dois personagens do conto estão sob a lei do egoísmo citada acima. Eles querem viver e, para isso, se iludem, convencem, prometem. É essa lei que faz os personagens de Machado interagirem com o mundo. É a ela que estão todos submetidos.
Os dois contos analisados possuem, então, vários motes em comum. A cegueira intrínseca ao homem - Ahasverus e D. Leonor -, a eterna exploração do homem pelo homem como a mola que move a civilização, a fugacidade das coisas mais belas e mais terríveis, a falta de diferença nas escolhas, tudo isso está presente nos dois textos em maior ou menor escala.
O texto desse “Viver!” termina com duas águias (presentes já no início) a observar e lamentar a condição humana que, mesmo com uma eternidade de provas de que o motor por trás das sociedades e pessoas é a pura sobrevivência, ainda “sonha com a vida”. Sonha com a vida, mas não com a real, e sim com uma sonhada, diferente e melhor.
Há ainda que apontar uma diferença na forma de um conto em relação ao outro. O formato de teatro de “Viver!” acaba por fortalecer, a meu ver, seu caráter “machadiano”. Isso porque, na medida que se apóia apenas no diálogo, sem um narrador a apontar reações emocionais com mais precisão, torna a intenção do texto ainda mais obscura e enigmática, tendo o leitor que procurar a lógica e a motivação dos personagens. Como a vida, esse conto de Machado nos pede que preenchamos as lacunas de significado e as elipses do diálogo, de maneira que aquilo que um leitor vê, outro possivelmente não veja. “Adão e Eva”, porquanto seja também enigmático, é menos obscuro em seu sentido. Sua alegoria é mais clara: o Demônio criar o mundo não é, afinal, uma coisa tão difícil de absorver para quem caminha sobre este planeta. A prosa do conto, ao mostrar reações e fornecer descrições, garante também esse maior entendimento.

Bibliografia

Assis, Machado de. “Adão e Eva” e “Viver!”. In Várias Histórias. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2002, p. 87-97.

Bakhtin, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Forense Universitária.

Bosi, Alfredo. “A máscara e a fenda”. In A máscara e a fenda. Machado de Assis – antologia e estudos. São Paulo: Ática, 1982.

Cândido, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

Lages, Susana Kampff. “Diabolias da Dialética – Literatura e sociedade no país do espelho”. In Revista USP. São Paulo: n. 49, p. 126 133, março/maio 2001.

Pereira, Lúcia Miguel. “Machado de Assis”. In Prosa de ficção: de 1870 a 1920. Rio de Janeiro/ Brasília: Livraria José Olympio/ INL, 1973.

Schwarz, Roberto. “Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis”. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2000.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

grandesertão.br, uma crítica

“-Nonada”. Que é expressão que todo letrando tem que saber o significado. Significados. Saber de cor, de lembrar, ou de gravar em papel, se a memória é fraca, como a carne. Início de grande narrativa saída da boca de Riobaldo. Quem pôs ali foi o Rosa, Guimarães. Esse, sabedor de outras terras, outras línguas, outras estórias. Nenhuma como esta: “Grande Sertão: Veredas”. Esta é dita, dizem, obra máxima, de mais, a mais boa. Outros adjetivos também. Que estes, adjetivos, se põe e se tira conforme a temporada. De o “Sertão” não: nasceu já inteiro, com adjetivo e tudo, e nunca mais tiraram. Que é este: clássico.
E tem doutor de muitas literaturas, outras, entendido, com caderno publicado e tudo, que analisa a obra, o romance, e tira múltiplas conclusões. É a crítica, chamada. Donde tem os que dizem coisa seguida de coisa, com sentido claro, de esclarecer. E os que não, que esses confundem gato com cão e acabam falando de trovão. Misturada, confusão.
Outro dia, de calmagem e tédio, de céu azul e sempre o mesmo, li um desses primeiros. De entendido, doutor de muitos saberes, emérito (não hermético), que é o que dizem desses sabedores. Li e gostei, dizia o título: “grandesertão.br”. Estranho nome. Isso digo sem estragar o resto, o conteúdo, que causa, causará, alguma falação. Das boas.
Caderno grosso, longo: li numa remada só!! Sou eu que sou desocupado, vagabundo? Sabe lá...Eu sei, mas não conto: não diz respeito a ninguém.
Mas dizia: o livro. Muitas coisas discutidas. Uma: a maneira de dizer. Língua, linguagem: causo à parte. Causos. Diz Willi Bolle, que este é o nome do emérito, que o texto do Rosa, tessituramente escrito que está, representa o povo, povão, cangaceiros e correlatos. Mas não representa, também. Coisa complicada: o Rosa cria a língua, linguagem, do povo daquelas paragens, ao Norte e ao dentro daqui. Mas que é fantasia, não existe. Miragem. Como essas que se têm quando não se come. Isso não passo, passei, mas compadre meu foi que contou. Mas o fato: é língua inventada, mistura de outras com essa, de fato, que se quer representar. E diz que o efeito, depois de lidos pontos e vírgulas e letras, é universal, de Universo, ou o nosso, pelo menos, que isso não é pouco. Outros, de outras paragens, não conseguiram. Este, Rosa, que é nosso, sim. E concebe Willi outras coisas: que “Grande Sertão” é hipertexto. É como super texto? É texto aumentativo? Não, que isso são outras coisas, irrelacionadas. O certo: que se pode ver, ler, seu conteúdo ligado, linkado, com outros grandes doutores, fundadores de nosso pensamento: Euclides de Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro, Antonio Candido e Celso Furtado. Linkado. Linkagem: linguagem modernosa que outra coisa não é que isto: um referenciamento constante com esse povo, leitura possível de “Veredas”, aumentando seu entendimento, seu alcance.
Isso, posto da maneira que foi, são coisas-nuvens, abstratas, mas que foi aí acima resumido, apresentado. Leia o livro quem quiser mais saber: dizer tudo que diz só copiando inteiriço.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Quem lê tanta notícia?

Por que fazer um blog? Poderia afirmar que as besteiras que aqui despejarei são melhores que a média das besteiras divulgadas pela net, mas não sei se isso é verdade. Uma resposta é que essas são as minhas besteiras e, como tal, são importantes para mim. Mas não é isso que faz todo autor? Escreve para si, motivado por seus interesses pessoais, suas obsessões, e espera que alguém mais ache aquilo minimamente interessante.
O incauto que acessar esta página terá cardápio amplo. Literatura, quadrinhos, política, mídia, cinema, música. Sei o que você está pensando. Aquele que se interessa por tudo não conhece nada, verdadeiramente. Pode ser, mas a variedade de áreas se relaciona com a abordagem que gostaria de dar aos textos, comparativa. Comparar o tema de um filme com seu tratamento em um livro; ou a adaptação de um livro para o cinema com a obra escrita; ou dois contos de um mesmo autor. Sob esse ponto de vista, a variedade só pode ser benéfica e enriquecer o conjunto.
Já se disse que escrever é cortar palavras. Assim, tentarei ser prolixo. Mas isso nem sempre será possível. Algumas coisas não se explicam com facilidade e, seguindo contra a maré de textos cada vez menores para uma platéia, dizem, cada vez mais volúvel em sua atenção, postagens maiores poderão ser encontradas. Para aqueles a quem isso incomoda, não se preocupem: colocarei muitas figuras.